“Se ainda cá estiver daqui a 20 anos, ou estou curado, ou sou um pickle.”
A uma pergunta séria, Michael J. Fox responde assim. Ele ri, o realizador ri e nós, espectadores, rimos. Rimos sem culpa, mesmo que a fonte da nossa gargalhada seja um homem a quem, com apenas 29 anos, foi diagnosticada a doença de Parkinson. Desde então, passaram-se cerca de três décadas, tempo suficiente para o ator digerir o que lhe calhou na lotaria. Ou será que isso existe sequer — um período definido para aceitar o que nunca pensámos ter de enfrentar? Trinta anos é muito tempo, mas não seria qualquer pessoa, com esta condição degenerativa e condicionante, que conseguiria ter sentido de humor.
“Still: A História de Michael J. Fox”, o documentário que a Apple TV+ estreia esta sexta-feira, 12 de maio, conta a ascensão e a queda daquele que tinha tudo para ter sido um dos maiores atores de Hollywood nas últimas décadas. O que torna este projeto, realizado por Davis Guggenheim, especial é que tem a duração perfeita (1h30); é dinâmico graças a uma montagem que junta imagens retiradas de filmes antigos e cenas recriadas; dá-nos acesso à vida pessoal de Fox e às suas lutas diárias sem chegarmos perto da barreira do voyeurismo; e nunca, mas nunca, nos deixa olhar para o ator como um coitadinho — nem quando a incapacidade de controlar os próprios movimentos é tão severa que o faz cair na rua perante as pessoas que passam.
A história começa na Florida, em 1990. Num quarto de hotel, um jovem cuja cara não vemos fica alarmado com os primeiros tremores: um dedo mindinho mexe-se de forma descontrolada, independente da restante mão. Corta para Michael J. Fox hoje, aos 61 anos, a levantar-se da cama e a calçar umas pantufas. Na primeira cena estamos perante um ator contratado para reproduzir aquele momento importante, na segunda temos acesso à intimidade (e à debilitante realidade) do verdadeiro Michael J. Fox — onde um ato que a maior parte das pessoas faz diariamente, de forma automática e sem qualquer espécie de esforço ou raciocínio, lhe exige um esforço sobrehumano.
[o trailer de “Still: A Michael J. Fox Movie”:]
A voz off de Michael J. Fox vai narrando, ao longo de todo o documentário, os episódios mais antigos da sua vida. São ilustrados com as tais recriações, como a da primeira cena, intercaladas com frames dos vários filmes e séries que o ator protagonizou. Juntam-se a isto entrevistas conduzidas pelo realizador a Fox (é o único interveniente que fala diretamente para a câmara), momentos em família e com os médicos ou fisioterapeutas.
O título “Still” (quieto) é uma ironia. Primeiro, porque com Parkinson a parte mais descontrolada é a motora. Segundo, porque, como o próprio diz, nem antes do diagnóstico conseguia estar parado. Desde miúdo, Michael J. Fox teve de arranjar mecanismos para desviar as atenções das suas desvantagens físicas. Era mais pequeno do que todos os outros (aos seis anos tinha a mesma altura da irmã de três), parecia muito pouco desenvolvido para a sua idade. Não parava, corria para todo o lado, acumulava asneiras e faltas na escola. A caminhada em Hollywood foi semelhante à de muitos atores que se tornariam estrelas: vivia num estúdio minúsculo, não tinha dinheiro sequer para comer. Para o papel em “Family Ties” (“Quem Sai aos Seus” em Portugal), aquele que acabaria por torná-lo famoso, os executivos do canal torciam repetidamente o nariz ao nome de Fox. Até que ele chegou ao estúdio e começou a contar piadas. As gargalhadas que provocou na equipa ditaram a resposta: não havia mais ninguém capaz de interpretar Alex P. Keaton.
Daí até ao ainda mais mítico papel na saga “Regresso ao Futuro” a escalada foi alucinante e é contada de forma tão ritmada que nos faz sentir em plena montanha-russa, sempre a subir entre 1982 e 1990. Aí há uma queda vertiginosa. 29 anos, recém-casado, um filho minúsculo, Parkinson. Onde é que cada um de nós estava aos 29 anos? Teríamos tido capacidade para encaixar esta notícia? Agora imaginem o menino dourado do cinema, no pico da sua carreira.
Não aceitou a “doença de velho”, trabalhou ainda mais, assobiou para o lado, bebeu, bebeu e bebeu. “Era definitivamente um alcoólico”, admite agora. E, mesmo assim, ninguém viu. Durante sete anos ninguém, além da sua família, sabia. Conseguiu manter a doença secreta, até que a carga de trabalho na série “Spin City”, que exacerbava os sintomas, e o facto de ter de se esconder, à espera que a medicação fizesse efeito, o obrigaram a revelar publicamente que tinha Parkinson. Nas cenas de alguns episódios podemos agora ver como eram notórios os tremores e o que ele fazia para disfarçá-los.
Talvez a única coisa que possamos apontar a “Still: A História de Michael J. Fox” é o facto de não recuperar realmente e explorar as emoções que esses eventos tiveram em Fox. Mas, como também vamos percebendo, ele não é um homem de muitas palavras. A dada altura, ouvimos o realizador dizer-lhe que estão à conversa há horas e o ator ainda não se queixou com dores. “Sim, estou com dores”, admite ele simplesmente. É uma evidência, não há nada que possa fazer sobre isso, portanto para quê falar sempre no mesmo?
O ator nem sempre consegue verbalizar rapidamente o que está a pensar (outro dos efeitos da doença) mas as piadas saem-lhe naturalmente da boca, não tremem, não se atropelam. Numa saída à rua com o preparador físico, acaba por cair aparatosamente enquanto uma mulher que passa por ele se vira para trás e pergunta se está tudo bem. Resposta: “Nice to meet you. You knocked me off my feet.” que podemos traduzir como “Prazer em conhecê-la. Deixou-me de rastos.”
Este é Michael J. Fox. E Michael J. Fox a ser Michael J. Fox é, sem dúvida, o melhor papel da sua carreira.