Em “Asteroid City” de Wes Anderson tudo parece uma brincadeira. Um lego sci-fi dos anos 50 que se vai desenrolando naquela paisagem de deserto, filmado entre o Arizona e Espanha. A peça de teatro encenada, escrita por um dramaturgo à deriva, que afinal será programa de televisão, que afinal é nada mais, nada menos, do que uma zona árida com uma pequena cidade lá dentro, onde militares e astrónomos se perdem entre a chegada de um alien e o sentido da sua própria existência. Em Cannes, sentiu-se novamente o peso das estrelas de Hollywood – — Scarlet Johansson, Brian Cranston, Maya Hawke, Jason Schwartzman, Steve Carell, elenco de luxo — que foram até ao Lumiére para ver o filme, todos juntos, pela primeira vez. Na conferência de imprensa, a conversa foi um repasto para quem quis entrar um pouco no universo único de Wes Anderson. “Nunca gosto de ver os meus filmes mas ontem, na estreia, fiquei a pensar e acho que consigo perceber porque é que fazemos isto”, disse o realizador norte-americano, que regressa ao Palais para entrar na competição oficial.

[trailer oficial do filme “Asteroid City”:]

Rodado em pandemia, o filme embarcou para um grande set com uma pequena comunidade de paranoicos americanos a em pânico sobre os mistérios que vêm lá de cima, com Seu Jorge, outro cúmplice de Anderson, a aparecer à hora de jantar para concertos improvisados. Melhor do que qualquer festa da Croisette. Uma operação militar confortável — como se isso pudesse existir, mas aqui, segundo os atores, existiu — dentro da operação militar ali filmada. Os atores entram e saem,  num baile que dança entre estúdio e cenário real, questionando-se sobre o que raio estão ali a fazer: se a tentar sobreviver num cenário apocalíptico, com testes de bombas nucleares ao primeiro café da manhã, se a mergulhar nas suas personagens trágicas, encurraladas, à procura da coordenadas que os levem dali para fora. Do deserto, da peça, da vida? Bela matrioska, é este o jogo que Anderson quer ter connosco. “Eu não consigo perceber esta peça de teatro”, diz Augie Steenbeck, fotógrafo de guerra, pai perdido de três personagens, viúvo, impávido, que se aproxima da dramática atriz de Hollywood Midge Campell (Scarlett Johansson), mas que vai afastando a dureza do passado que o persegue. “Não interessa, continua a contar a história”, diz-lhe Adrian Brody, ator em carne e osso e professor em “Asteroid City”.

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Wes Anderson com o elenco de “Asteroid City”, em Cannes.

Se no filme andam perdidos, em Cannes seguem na orquestra de Wes. Disco repetido na rodagem, onde não houve “hierarquias”: o realizador-mestre fez, faz e fará de tudo para criar um ambiente confortável para os atores. Em “French Dispatch”, Wes foi à procura da história por detrás dos jornalistas, em “Ilha dos Cães”, dedicou-se ao reino animal, em “Grande Budapeste Hotel”, pesquisou os meandros  e diferenças de classe do mundo hoteleiro. Mas “Asteroid City”, que podia ser vista como a primeira tentativa de brincar à ficção científica — o próprio “não acredita em aliens”, portanto, poderemos descartar a hipótese –, é um estudo dentro do estudo sobre a performance. É Wes, mestre, a aguçar ainda mais a sua curiosidade sobre os seus músicos, atores. “Os atores estão conectados de alguma forma. Vão ser vistos e analisados por toda a gente até ao mais ínfimo detalhe. É uma experiência única. E um mistério para mim. Este filme é sobre atores”, revelou.

Surpresa? Até poderá ser. O realizador habituou-nos à sua estética própria, carregada de cor, de travellings como se a câmara fosse um gigante de dez metros, de planos desconexos, que agora até tem versões de Tik-Tok à Inteligência Artificial, mas parece mais interessado do que nunca em “manter o seu cinema como se fazia nos anos 30” e em repetir a sua fórmula visual para se preocupar com a história que quer contar. E foram eles, os atores, que estenderam a passadeira para entrar na cabeça do realizador durante a conferência de imprensa. Sentiram-se no teatro a fazer teatro, numa organização harmoniosa que se traduz numa palavra, por vezes, ausente na indústria cinematográfica: eficácia. Do início ao fim. Podem ter sido politicamente corretos, mas sentiu-se o respirar fundo. Por exemplo, uma das revelações que mais zum zum gerou no Palais foi a de que Wes Anderson deu voz a todas as personagens quando fez o seu storyboard, uma planta da casa que os atores seguem para não se perder. Ou para adquirir novos talentos — a música de Seu Jorge volta, mas o ator Rupert Friend, que teve de a interpretar, sem saber nada sobre cantar.

Um livro de instruções exclusivo, sempre a aprender, mesmo que os anos de escola já tenham passado. No dia em que a coleção completa de Wes for a leilão, é bem capaz de se aproximar dos orçamentos do cinema norte-americano. Para se perceber a devoção de quem representa, basta olhar para Scarlett Johannson, que só agora, ao décimo primeiro filme de Wes Anderson — fez parte da animação “Ilha dos Cães”, mas só com a sua voz — é que deu corpo a uma personagem do realizador. O papel foi escrito só para si porque Anderson queria entender quem era esta atriz. Questionada sobre se o cinema estava na sua vida real ou nos sonhos, revelou-se quase sem resposta. Parou, pensou, deambulou um pouco com o realizador e lá encontrou o caminho. “Já sou atriz há muito tempo e apercebi-me que o meu trabalho é uma extensão do meu sub-consciente. Uso os meus sonhos para o meu trabalho. Cheguei a enviar alguns deles por mensagem ao Wes Anderson”, revelou.

Trocas de mensagens, storyboards animados, uma loja de guloseimas para qualquer fã. Quem trabalha com Wes Anderson quer sempre voltar. A equipa está a crescer cada vez mais, mas há pouco espaço para improvisos. O anfitrião de serviço desta orquestra tem sido Jason Schwartzman, um dos atores que mais vezes fez parte do universo Anderson. Na conferência de imprensa, esteve sempre atento a cada pergunta e reagia. Emocionado, feliz, agradecido. Cinema dentro do cinema, outra vez. Conheceu o realizador quando tinha apenas 17 anos (entrou no filme “Rushmore”) e foi o único, diz, que quis saber o que pensava. “Foi a primeira pessoa, fora da minha família, quis saber o que é que eu pensava, não estava habituado. Esse feeling é a razão para estarmos aqui. A sua curiosidade, o ver o que os outros não veem”. Vinte e cinco anos de amizade e de trabalho. “Ele esteve num dos meus primeiros filmes e era muito novo. Passamos muitos anos juntos. Nós dependemos um do outro de uma forma muito próxima. Na rodagem vinha sempre em personagem, ficou comigo”, argumentou Wes. O sentido da performance de um ator poderá nunca ter explicação racional, mas a razão pela qual o realizador tem sempre uma fila de intérpretes a querer entrar nos seus filmes, pareceu, mais uma vez, razoavelmente óbvia no Festival de Cannes deste ano.