A utilização de cetamina no tratamento de depressão severa (resistente a outros tratamentos) mostrou ser eficaz em uma em cada cinco pessoas  de um ensaio clínico de fase 3 conduzido na Austrália e na Nova Zelândia — e muito mais barato que os tratamentos já existentes no país. O tratamento não é, no entanto, uma cura e deve ser prolongado. Os resultados foram publicados esta sexta-feira pela revista científica The British Journal of Psychiatry.

A cetamina racémica (com uma mistura em partes iguais de S-cetamina e R-cetamina) foi administrada por via subcutânea (injetada por baixo da pele) duas vezes por semana ao longo de quatro semanas (o período máximo do ensaio). Os investigadores concluíram que um quinto dos participantes no ensaio chegou à remissão total dos sintomas no final de um mês de tratamentos (20% das pessoas em tratamento, contra 2% com placebo) e que cerca de um terço melhorou os sintomas em, pelo menos, 50%.

Para pessoas com depressão resistente aos tratamentos — ou seja, aqueles que não beneficiaram de diferentes modelos de psicoterapia, de antidepressivos vulgarmente prescritos ou de terapia eletroconvulsiva —, 20% de remissão é, na verdade, muito bom“, disse, em comunicado de imprensa, a psiquiatra Colleen Loo, coordenadora do estudo e professora Universidade de Nova Gales do Sul (Austrália).

Os autores destacam também o efeito da cetamina em doentes com depressão muito grave, como aqueles que fizeram terapia electroconvulsiva — que só é recomendada quando todos os outros tratamentos falharam, explica Colleen Loo. “A maior parte dos estudos exclui as pessoas que fizeram terapia eletroconculsiva porque é muito difícil que um novo tratamento resulte quando a terapia eletroconvulsiva não resultou”, disse a psiquiatra.

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Neste ensaio, 24% dos doentes tinha experimentado a terapia eletroconvulsiva sem resultados positivos, mas “uma dose adequada de cetamina racémica produziu efeitos notórios, tanto clinicamente como estatisticamente superiores aos do midazolam [usado como placebo]”, escreveram aos autores no artigo.

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O ensaio contou com dois grupos: um em que a dose do tratamento (cetamina) e do placebo (midazolam) foram constantes ao longo das quatro semanas e outro em que as doses foram sendo ajustadas. Se no primeiro grupo não houve diferenças significativas entre os dois medicamentos; no segundo grupo, em que a dose foi aumentada sempre que necessário (30 das 53 pessoas com cetamina e 38 das 53 pessoas com placebo), o tratamento com cetamina mostrou-se mais eficaz na remissão da depressão.

Quatro semanas depois do fim do tratamento, eram menos as pessoas que continuavam a apresentar remissão total da depressão, o que para os investigadores indica que os tratamentos com cetamina devem ser continuados. Ou seja, as quatro semanas não curaram a depressão destes doentes e os sintomas regressam. Os investigadores dizem que não têm mais casos para análise porque várias das pessoas que apresentaram remissão com quatro semanas de ensaio clínico continuaram os tratamentos com cetamina, num ensaio “open-label” (ensaio prolongado, sem placebo, para se avaliarem efeitos benéficos e secundários a longo prazo).

Os resultados atuais confirmam que se o tratamento com cetamina for descontinuado ao fim de quatro semanas, os benefícios não se mantêm para todas as pessoas que chegaram à remissão e a continuação dos tratamentos deve ser considerada”, escrevem os autores do artigo.

O presente ensaio mostrou que a cetamina racémica (mistura), usada frequentemente como anestésico e para a qual existe uma formulação genérica, era segura e eficaz (quando comparada com um placebo). Desta forma, os investigadores pretendem defender o seu uso como alternativa à S-cetamina — já aprovada —, que tem a vantagem de uma administração fácil (por inalação), mas que é consideravelmente mais cara.

Além disso, os investigadores adotaram a injeção dos medicamentos na pele, por oposição ao que já se faz noutros países — como em Portugal, como refere o Público —, em que o tratamento consiste numa infusão de 40 minutos (ou seja, diretamente na circulação sanguínea).

Os investigadores indicam ter usado um placebo diferente da generalidade dos ensaios — normalmente uma solução salina sem quaisquer efeitos secundários (e que se percebe facilmente ser placebo). Aqui, usaram o midazolam, que também tem uso na anestesia (mas não na depressão) e que pode ter efeitos psicoativos semelhantes aos da cetamina.

Os doentes e médicos que participaram no ensaio clínico não sabiam, à partida, quem estaria a receber o tratamento e quem estaria a receber o placebo — naquilo que se chama um ensaio duplamente cego, para que os intervenientes não sejam influenciados por saberem que receberam ou não o tratamento verdadeiro. Mas, na verdade, a eficácia do tratamento e aquilo que os doentes sentiam nas horas seguintes a administração do fármaco fizeram com que a maioria adivinhasse o que lhe tinha sido dado.

No futuro, os investigadores esperam poder conduzir ensaios de longo prazo, assim como comparar a eficácia de cetamina racémica, com a S-cetamina e a R-cetamina.

Austrália aprova uso de substâncias psicoativas para fins medicinais em duas doenças

A Austrália aprovou o uso de S-cetamina inalável (spray nasal) para o tratamento de depressão severa em março de 2021. Desde 1 de julho de 2023, psiquiatras autorizados também podem prescrever produtos que contenham MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina, conhecido como ectasy) ou psicobilina (presente nos “cogumelos mágicos” ou LSD) para condições de saúde mental específicas.