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“O acordo dos cereais está suspenso”. Em apenas seis palavras, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov fez disparar os alarmes de uma crise alimentar global ao anunciar o fim da iniciativa que, até aqui, permitia a passagem de bens alimentares da Ucrânia através do Mar Negro.

Desde agosto de 2022, quando foi firmado pela primeira vez, o acordo permitiu a passagem de quase 33 milhões de toneladas de cereais e outros bens alimentares, mitigando os efeitos da fome e da escassez um pouco por todo o mundo e sobretudo nos países mais pobres. Com efeito, mais de metade dos cereais exportados foram para países em desenvolvimento e sob a alçada de programas de assistência do Programa Alimentar Mundial, largamente dependentes das importações ucranianas para assegurar a sua conclusão.

As reações da comunidade internacional não se fizeram esperar. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, criticou a decisão “cínica” de Moscovo; nos EUA, falou-se num “ato de crueldade” russo; nas Nações Unidas (ONU), o secretário-geral, António Guterres, lamentou o sofrimento que o fim da iniciativa irá causar a milhões de pessoas que “não têm escolha”.

No entanto, o inevitável coro de críticas à retirada russa veio acompanhado de sinais, de ambos os lados, de que o acordo pode ainda ser reatado. Os líderes europeus e da ONU garantiram que vão continuar a trabalhar para reavivar a iniciativa e o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, afirmou mesmo que Vladimir Putin tem vontade em manter vivo o acordo e que o assunto será discutido entre os dois quando Putin for à Turquia para uma cimeira em agosto.

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Rússia suspende acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro

Porque é que a Rússia rasgou o acordo e o que pretende Moscovo?

No centro da cisão estão as acusações russas de que as suas exigências para a continuação da iniciativa não foram respeitadas. Na altura em que o acordo foi firmado, a ONU concordou em ajudar a Rússia a facilitar as exportações dos seus próprios cereais e fertilizantes como forma de mitigar as sanções internacionais à Rússia.

Quase um ano depois, o Kremlin diz que os esforços feitos nesse sentido não foram suficientes. Apesar de os países ocidentais não terem imposto sanções aos produtos agrícolas provenientes da Rússia, os responsáveis do país afirmam que as sanções que já estão em vigor têm afetado as exportações, na medida em que desincentivam empresas transportadoras, bancos e seguradoras internacionais de negociar com produtores russos.

A solução defendida pelo Kremlin passa por permitir a ligação do Banco Agrícola Russo ao SWIFT, o sistema de pagamento rápido usados pela grande maioria das entidades bancárias internacionais — e do qual todos os bancos russos foram banidos em junho de 2022.

A contra-proposta da ONU, que sugeriu que Moscovo estabelecesse uma empresa subsidiária do banco agrícola para aceder ao SWIFT, não convenceu Moscovo, que disse que tal solução demoraria demasiado tempo a estar operacional. Esta segunda-feira, aquando do anúncio da suspensão, Dmitry Peskov indicou que Moscovo está disposto a reatar o acordo — mas só quando “as exigências russas forem cumpridas”.

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Com o fim do acordo, o que podem a Europa e a Ucrânia fazer?

Ainda antes da retirada da Rússia, a União Europeia mostrou abertura para ligar uma subsidiária do Banco Agrícola russo ao SWIFT — proposta que, já se sabe, foi rejeitada pela Rússia. Não sendo, neste momento, claro se Bruxelas está disponível para aceitar as exigências russas, que opções restam para a exportação de cereais?

Uma delas passa por aproveitar as rotas terrestres já existentes. Em concreto, a União Europeia (UE) anunciou um plano para fazer o transporte de cereais através da fronteira entre a Ucrânia e a Polónia; uma vez fora do território ucraniano, os produtos agrícolas seriam exportados pelos portos do Mar Báltico ou por meio de transportadores ferroviários até à Roménia.

No entanto, esta solução coloca os seus próprios problemas. Desde logo, a via polaca tem sido usada desde a guerra para transportar cerca de 10% das dos cereais exportados; no entanto, boa parte destes cereais têm ficado na Polónia e em países vizinhos em vez de seguirem caminho, uma vez que a rede ferroviária na Europa de Leste não consegue dar conta do volume de exportações atual.

Tal já deu origem a crises nos mercados locais que já levaram a UE a impor temporariamente restrições ao trânsito de produtos agrícolas ucranianos — um problema que seria exacerbado de forma drástica caso a totalidade das exportações ucranianas fossem conduzidas por esta via.

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O acordo dos cereais pode continuar sem a Rússia?

Perante as ameaças de uma retirada russa do acordo dos cereais, a Ucrânia tem nos últimos tempos flutuado a ideia de um “plano B”: a continuação da iniciativa sem o envolvimento da Rússia.

A ideia voltou, aliás, a ser defendida por Volodymyr Zelensky já esta segunda-feira. Para o efeito, o Presidente ucraniano anunciou ter “enviado cartas oficiais ao Presidente da Turquia, Erdogan, e ao secretário-geral da ONU, Guterres, uma proposta para continuar a Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, ou uma sua análoga, num formato trilateral”. Ou seja, apenas envolvendo Ucrânia, Turquia e Nações Unidas.

No entanto, a verdade é que esta opção será praticamente impossível de implementar, uma vez que necessitaria do envolvimento militar da Turquia para garantir o transporte seguro dos cereais, em confronto com os navios militares russos. Esta hipótese foi, de resto, descartada na última semana pelo embaixador ucraniano em Ancara.

“A Turquia nunca vai entrar numa confrontação aberta com a Rússia, pelo que [a ideia da] marinha turca escoltar as embarcações [de cereais] é uma fantasia”, declarou Vasyl Bodnar aquando da viagem de Zelensky a Istambul para se encontrar com Erdogan.

Outra alternativa proposta por Kiev para salvaguardar a proteção dos navios passa por criar um “fundo de garantia” estatal de cerca de 500 milhões de euros para cobrir as despesas de eventuais ataques russos. O Presidente da Associação de Cereais da Ucrânia, Mykola Gorbachov, descreveu a solução como “uma espécie de seguro estatal. (…) Por exemplo, se a Rússia atacar, o Estado simplesmente cobrirá as despesas”.

Segundo a proposta original, a Comissão Europeia pagaria as compensações, com a Ucrânia a reembolsar os custos numa data futura. Até ao momento, Bruxelas não deu indicações de que aceitará este acordo.

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