Pobres bonecas Nenuco, Nancy, Barriguitas e outras tradicionais. Como podem elas competir com a Barbie, a sua poderosa, temível e adulta rival da Mattel? E agora que ela tem um filme com o seu nome (ainda por cima, realizado por Greta Gerwig, um dos nomes mais considerados do cinema “indie” americano, que também escreveu o argumento com o seu parceiro Noah Baumbach), o primeiro não de animação e também não dirigido preferencialmente às crianças que a compram, como elas devem sentir-se humilhadas e fragilizadas. Ainda por cima, são implacavelmente gozadas na sequência de abertura de “Barbie”, com uma paródia a “2001 — Odisseia no Espaço”.

[Veja o “trailer” de “Barbie”:]

A culpa é toda do capitalismo, isto é, da Mattel, que decidiu “reposicionar-se como marca”, como se diz agora no jargão do “marketing” e da publicidade, após ter tido recentemente prejuízos de 300 milhões de dólares e entrado numa crise não só de caixa, como também de identidade empresarial. Assim, e a exemplo das editoras de “comics”, a empresa vai lançar “franchises” de filmes baseados nos seus brinquedos mais famosos. Depois da Barbie, já estão na calha para saltar para a tela os Masters of the Universe liderados pelo He-Man, os Hot Wheels (J.J. Abrams será o realizador) e os Rock’Em Sock’Em Robots (com Vin Diesel à frente do elenco).

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Ynon Kreiz, o atual presidente da Mattel, disse à revista New Yorker que não queria um filme da Barbie que “ridicularizasse” a boneca, porque é um brinquedo “aspiracional e inspirador”. Neste particular, Kreiz é capaz de não ficar lá muito satisfeito, porque “Barbie” não só vem balizado por um enorme par de aspas “irónicas”, como também carrega uma considerável mochila de conversa auto-importante. O filme até começa bem, situado na plastificada Terra das Barbies, onde predomina o cor-de-rosa, e que reproduz na perfeição e em grande escala urbana o universo de brinquedo da boneca — não faltam sequer os modelos que fracassaram comercialmente e foram retirados do mercado, caso do permanentemente atarantado Allan.

[Veja uma entrevista com Greta Gerwig:]

Estamos num mundo perfeito dobrado de utopia feminina onde as Barbies dominam, ocupando as posições de importância e recolhendo todas as recompensas de prestígio. Os Kens são adereços para vista, burros como paus e socialmente inferiores. Mas a Barbie loura original (Margot Robbie, também produtora) começa de súbito a ter interrogações existenciais e a pensar na morte, ganha pés chatos, fica incapaz de calçar os seus saltos altos e aparece-lhe celulite nas pernas. Vai então visitar a disfuncional Barbie Estranha, que vive à margem de todas as outras, e esta diz-lhe que a responsável por estas alterações é a menina que brinca com ela no Mundo Real. Onde terá de ir para resolver o problema. Barbie põe-se a caminho e descobre que o Ken original (Ryan Gosling) vai de clandestino no carro, resignando-se a levá-lo também. O choque de ambos será colossal.

[Veja uma entrevista com Margot Robbie e Ryan Gosling:]

“Barbie” até tem alguma piada enquanto se apresenta como uma comédia gentil e ironicamente gozona, que dá várias alfinetadas na própria Mattel, mas fiel às características originais da boneca “realista” criada em 1959 pela empresária e inventora Ruth Handler e batizada com o nome da sua filha Barbara, e a todo o mundo lúdico e imensamente lucrativo que foi sendo construído a partir dela, com casas, guarda-roupas, animais, veículos e múltiplas declinações da boneca-matriz e do seu namorado Ken. Só que Greta Gerwig não se contentou em filmar um divertimento sofisticado, de grande elaboração visual e em segundo grau humorístico.  

Não, “Barbie” tinha também que ser um filme “relevante”. E a partir do momento em que Barbie e Ken põem os pés (e primeiro, os patins) no mundo real, a comicidade “irónica” e a leveza de tom são subalternizadas, e “Barbie” põe-se a perorar, não sem uma boa dose de demagogia e pensamento pré-fabricado, sobre a ontologia e a simbologia da Barbie, o poder do “patriarcado”, a posição das mulheres nas sociedades contemporâneas, a relevância (ou não) das bonecas para as meninas do nosso tempo, as relações entre mães e filhas, e homens e mulheres, e as angústias da condição feminina. Dá vontade de parafrasear Hitchcock: “Greta, é só uma boneca”.

[Veja uma sequência de “Barbie”:]

É muito difícil, senão mesmo impossível, ter sol na eira e chuva no nabal. E apesar de haver alguns bons “gags” aqui e ali, sobretudo na Terra das Barbies subvertida pelos Kens que se transformaram em machistas arrogantes, mas que continuam burros como paus, “Barbie” torna-se ridiculamente problematizador, demasiadamente sentencioso e desnecessariamente “ativista”. Sobretudo porque se trata, no fundo e antes de mais, de um filme para capitalizar com uma boneca de plástico e ajudar à recuperação financeira da Mattel. (Será que He-Man vai passar parte de “Masters of the Universe” angustiado com sua “masculinidade tóxica”, e Skeletor a entrar em contacto com o seu “lado feminino”?).

O final da fita, em que a própria Ruth Handler (interpretada por Rhea Perlman) entra em cena pela segunda e última vez, para apaziguar as hostes de bonecos e humanos, e para que aconteça a Barbie o que acontece a Pinóquio, com o brinde de órgãos genitais, é, no mínimo desconcertante. E deve ter deixado Ynon Kreiz de cara à banda. E, se ainda fosse viva, a própria Ruth Handler.