Em 1989, o realizador inglês Roland Joffé (“Terra Sangrenta”, “A Missão”) fez “Sombras no Futuro”, um filme sobre o fabrico das primeiras bombas atómicas, durante a II Guerra Mundial, em Los Alamos, no âmbito do Projeto Manhattan, e as relações entre o renomado físico J. Robert Oppenheimer (interpretado por Dwight Schultz), desde aí chamado “o pai da bomba atómica”, mentor desta iniciativa secreta do governo dos EUA e diretor do respetivo laboratório, e o general Leslie Groves (Paul Newman), diretor do projeto. “Sombras no Futuro” não caiu bem junto do público e da crítica e foi esquecido.

Seria interessante rever e reavaliar esta fita de Roland Joffé, tendo em conta “Oppenheimer”, a nova realização do seu compatriota Christopher Nolan (“Interstellar”, “Dunquerque”), que aborda exatamente o mesmo tema, além de focar também a vida do próprio Oppenheimer antes e depois do Projeto Manhattan. Embora seja baseado em American Prometheus, uma biografia do físico publicada em 2005 e escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin, “Oppenheimer” é um daqueles filmes em que o realizador parece ter adaptado a entrada da Wikipédia do biografado. Com o detalhe de o ter feito – e sem a menor necessidade — em IMAX e com uma banda sonora omnipresente e tão trovejante, que atenta à integridade dos ouvidos do espectador.

[Veja o “trailer” de “Oppenheimer”:]

Rodado a cores e a preto e branco, com Cillian Murphy no papel de J. Robert Oppenheimer e três horas de duração, “Oppenheimer” é um filme muito cheio de si e com a convicção de que está a dizer coisas importantíssimas sobre o protagonista, as relações entre ciência e poder político e o tema das armas nucleares (daí o tom permanente portentoso e o abuso da música e do som). Mas que contempla os lugares-comuns, situações feitas, dispositivos narrativos e esquematismos do filme biográfico, não consegue trocar por miúdos, para benefício do espectador, as complexidades da física quântica e da conceção teórica e fabrico de um engenho atómico, nem visualizar os conceitos e as particularidades do mundo quântico e da energia atómica que estão no centro da vida de Oppenheimer e da história da criação da bomba — e que formam o miolo dramático da fita.

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[Veja uma entrevista com Christopher Nolan:]

A esta dimensão de factualidade e síntese “wikipédica”, junta-se o facto de Christopher Nolan ter dado folga à sugestão e à subtileza. “Oppenheimer” é um filme pesada e pomposamente “didático”, muito explicado, em que o realizador usa o aparato do IMAX e a banda sonora ribombante de Ludwig Göransson para sublinhar a traço grosso o óbvio. Faltam implícitos, finura, pausas e silêncio (veja-se como o silêncio entre a detonação e a onda de choque é fundamental para o impacto dramático e visual da excelente sequência — a melhor do filme — do teste noturno de Trinity, o protótipo da bomba atómica, no deserto); e falta ao realizador confiança nos atores para passarem emoções e informações, sem estarem envolvidos por um barulho ensurdecedor.

[Veja uma entrevista com Cillian Murphy:]

Nolan está constantemente a fazer grandes planos da cara de Oppenheimer nas mais variadas circunstâncias da sua vida pessoal, de indagação intelectual, em momentos-chave de discussão e confronto com os seus pares ou com o general Groves (bem personificado, imagine-se, por Matt Damon) em Los Alamos no processo de conceção e de construção da bomba, ou de interrogação e agonia perante acontecimentos íntimos ou durante o processo de investigação oficial a que o físico foi submetido já durante a Guerra Fria. E não há um em que Cillian Murphy não esteja acompanhado, cercado, atormentado, pela estrondeante banda sonora de Göransson.

Christopher Nolan queria decerto deixar-nos a pensar na peculiar e complicada personalidade de J. Robert Oppenheimer e nos dilemas morais que o assaltaram após o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki, nos mistérios e nos fascínios da física quântica e na persistência da ameaça de uma guerra nuclear que vem desde o tempo da Guerra Fria e do chamado “equilíbrio do terror” entre EUA e URSS, as duas superpotências então dominantes, e tornada maior agora com a situação na Ucrânia. Mas a única coisa que levamos deste balofo e interminável “Oppenheimer” é mesmo o barulho.