Ao contrário do que se passava na minha infância, hoje já quase ninguém acha que a banda-desenhada é coisa de crianças ou de adolescentes com problemas de acne, tal é a ubiquidade dos super-heróis na cultura popular consumida pelas massas — sobretudo no cinema, mas também em séries, videojogos e ainda nas próprias páginas impressas semanalmente aos quadradinhos.
Confesso que entrei em “Superpowered: The DC Story” de pé atrás. O legado cultural da entidade que nos apresentou ícones como Super-Homem, Batman, Wonder Woman, Flash, Aquaman e seus não menos importantes arqui-inimigos (como Joker, Catwoman e Lex Luthor) é digna de análise e certamente merecedora de um documentário. Mas seria esta série documental em três partes um longo artigo de propaganda corporativa ou um olhar genuíno sobre uma editora cuja história é sinónimo de todo o percurso da banda desenhada até aos dias de hoje? O resultado é misto.
Os realizadores Mark Catalena e Leslie Iwerks apresentam um currículo promissor, sobretudo Iwerks que em 2007 recebeu uma nomeação para o Óscar de Curta Metragem Documental por “Recycled Life”, uma investigação sobre o maior aterro de lixo da América Central e os seus impactos na comunidade local da Guatemala. Até o seu envolvimento em outros projetos histórico-empresariais, como “The Pixar Story” (2007), foi bem recebido, com uma indicação ao Emmy. Iwerks é ainda autora de produtos similares para a Warner Bros, Disney e Industrial Light & Magic.
[o trailer de “Superpowered”:]
No entanto, é sempre complicado quando quem assina os cheques é também o sujeito de observação de um documentário, como acontece em “Superpowered”, produzido pela HBO Max (que tem recebido tanto rebranding que a denominação pode já nem estar correta entre as horas que vão da escrita do artigo à sua publicação), subsidiária da Warner Bros, empresa que detém a DC e distribui os filmes da mesma.
Enquanto documentário, o primeiro dos três episódios é certamente o mais valioso, explorando as origens não só da Detective Comics como da própria banda desenhada, uma forma de arte à beira de se tornar centenária no modo como hoje a conhecemos e cujos dois mais icónicos super-heróis nasceram separados por apenas um ano – Super-Homem (1938) e Batman (1939). Com imagens de arquivo, depoimentos de autores da atualidade e a narração de Rosario Dawson, somos cronologicamente guiados pela chamada Era Dourada da BD e das suas primeiras adaptações a outros tipos de media como a televisão e as rádio-novelas. Do eterno rival Marvel, pouco é dito ou avaliado, o que não sendo surpreendente deixa um pouco a desejar. Ainda assim, pequenas histórias como a admissão tardia do co-criador do Batman, a necessidade de uma personagem feminina de referência que deu origem a Wonder Woman ou o famoso Comics Code of Authority que retirou quase toda a violência e polémica das páginas de BD nos anos cinquenta fazem do primeiro tomo da série um documento histórico fascinante para quem se interesse pelo tema.
Os problemas de “Superpowered” vão crescendo à medida que nos aproximamos do presente e, por consequência, da fase cinematográfica a que ninguém hoje consegue escapar. Se o segundo episódio ainda consegue sublinhar pontos muito válidos e interessantes sobre a evolução e reinvenção dos livros de banda-desenhada, reflexos do seu tempo e por vezes percursores das questões sociais em que são criados (como a igualdade de género ou a proliferação de super-heróis negros durante os movimentos raciais dos anos sessenta), eles vão sendo cada vez mais entremeados com vinhetas toscas de atores principescamente pagos dos filmes mais recentes a mencionar o quão satisfeitos estão em fazer parte da família DC.
Do terceiro e último episódio pouco mais se aproveita do que os trechos sobre a Milestone Comics, uma sub-editora da DC fundada por autores de minorias e dedicada a contar as suas histórias, e a emotiva resposta ao 11 de Setembro, já que praticamente tudo o resto é um longo anúncio às múltiplas séries televisivas e jogos de vídeo com que a empresa tem inundado o mercado. Os temas mais polémicos que envolvem a DC durante a sua história — e sobretudo nos últimos anos — como o corte de funcionários, as alegações preocupantes sobre algumas das suas estrelas e os falhanços épicos de bilheteira, quase não são mencionados e, quando o são, são rapidamente abafados por mais um lembrete de que o Batman e o Super-Homem marcaram gerações e vendem muitos brinquedos, para o caso de já nos termos esquecido. Aliás, os tópicos controversos abordados com maior candura são os mais antigos da empresa, até porque é gente já há muito falecida e por isso com menos tendência a ficar aborrecida.
Enquanto meio de contar uma história, a banda-desenhada é certamente um dos veículos mais fascinantes. Os seus super-heróis albergam uma mitologia que nos remete para quando os nossos antepassados em todas as culturas ancestrais do globo começaram a usar narrativas para explicar o mundo ao seu redor. Estas figuras icónicas, algumas com largas décadas de existência, continuam a ser re-inventadas por novos autores de todos os perfis sociais, permitindo novas reflexões e olhares num dispositivo familiar, mergulhando as personagens no contexto da sua própria modernidade e polvilhando a imaginação das gerações seguintes, inspirando-as a repetir o processo sob o seu olhar. No seu melhor, é a fusão rara de arte e entretenimento, limitado apenas pela tinta disponível para desenhar o que os seus autores engendraram, lembrando-nos que mais importante que os super-poderes é a humidade dentro de cada um que conta.
“Superpowered” consegue passar esta mensagem e providenciar um contexto histórico que ilumina algo que foi presente em quase todas as nossas infâncias e adolescências. Mesmo a evolução visual, tecnológica e até de tom dos filmes mais reconhecidos da DC é um caminho que interessa acompanhar. É só pena que pelo meio quase dê para ouvir os executivos da Warner a exigir aos seus autores que coloquem mais clips da série “Arrow” e do Zachary Levi a dizer que se divertiu muito a filmar o “Shazam”.