O julgamento dos arguidos acusados da morte de Jéssica Biscaia chegou esta terça-feira ao fim. Na maior sala do Tribunal de Setúbal, com todos os mais de 40 lugares ocupados, os cinco arguidos deste processo ouviram a leitura do acórdão que define os próximos anos da sua vida. Para quatro deles, incluindo a mãe de Jéssica, define, pelo menos, os próximos 25 anos. O tribunal considerou que a pena dos arguidos não pode ser atenuada e Inês Sanches, Ana Pinto, Esmeralda Montes e Justo Montes foram condenados pelo crime de homicídio qualificado a 25 anos de prisão, a pena máxima que poderia ser aplicada. “Inês Sanches sabia que era mãe de Jéssica e que tinha uma responsabilidade acrescida, que deliberadamente desprezou”, disse o juiz Pedro Godinho, acrescentando que Inês “só gostava da filha para a ter”, como se fosse um objeto.

“A pergunta que não sai da cabeça é: porquê?”, questionou, referindo que, mesmo depois do julgamento, não foi possível perceber qual o motivo que levou à morte de Jéssica.

Não é preciso ser licenciado em Direito para saber que quem acolhe uma criança em sua casa assume o dever de garantir a sua segurança e defesa.”

Todos os arguidos foram absolvidos dos crimes de rapto, violação e tráfico de droga, o que significa que Eduardo Montes acabou por não ser condenado por qualquer crime, uma vez que estava acusado de dois crimes de violação e tráfico de droga.

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No total, e contadas pelos peritos do Instituto de Medicina Legal, Jéssica sofreu 78 lesões — entre pancadas, arranhões e queimaduras. E foram estas lesões que o juiz Pedro Godinho utilizou para justificar a aplicação da pena máxima de prisão para os quatro arguidos. Dando uma pancada na mesa e olhando para os arguidos sentados à sua frente, disse: “Só o barulho incomoda. Foram 78 destas”.

Os cinco arguidos e os crimes que constam na acusação

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.

Desta vez, e ao contrário daquilo que aconteceu em todas as sessões deste julgamento, o juiz Pedro Godinho entrou na sala antes dos quatro arguidos que se encontram detidos. E, ainda antes da leitura do acórdão, o juiz Pedro Godinho anunciou uma alteração substancial de factos, dando foco à responsabilidade de Inês Sanches, que “não chamou socorro médico, nem apresentou queixa às autoridades”.

“As fortes pancadas, arranhões, cortes, queimaduras, provocaram em Jéssica Biscaia sofrimento e dor atrozes”, disse o presidente do coletivo de juízes, acrescentando que Justo Montes, Esmeralda Montes e Ana Pinto “sabiam que era uma criança indefesa, sabiam que as diárias e sucessivas agressões, incluindo cabeça e sola dos pés, provocariam grande sofrimento e tortura”.

Também antes de avançar para a leitura das respetivas penas, o juiz Pedro Godinho, deixando as folhas de lado, falou diretamente para os cinco arguidos, de forma simples, “para que percebam o que se passou”. “Este julgamento teve muitas peripécias, mas felizmente temos a ajuda da ciência. A única que falou e falou muito foi a Jéssica Biscaia. Falou por intermédio da autopsia e por intermédio do senhor perito que falou aqui em tribunal.”

No entanto, não foi possível, segundo o tribunal, apurar por que razão Jéssica foi entregue aos arguidos pela sua mãe. Para o Ministério Público, a criança de três anos terá sido entregue como moeda de troca por causa de uma dívida por serviços de bruxaria, mas o presidente do coletivos de juízes explicou que “existem indícios, mas não se provaram” todos os pontos descritos na acusação sobre a dívida, não sendo, por isso, suficiente para confirmar “o enredo que foi criado à volta”. E não foi possível provar este “enredo”, sobretudo porque Inês Sanches apresentou, ao longo do seu depoimento neste tribunal, versões contraditórias.

“Obviamente o tribunal não se pode agarrar a isso [versões apresentadas pela mãe de Jéssica]. Demos como provado que terá havido uma divida. Agora, de que é que era a divida, não fazemos ideia. E não fazemos ideia porque é que a Jéssica foi entregue duas vezes no beco do pinheiro. E a ameaça também não faz qualquer sentido.”

Na última sessão, durante as alegações finais, o Ministério Público pediu pena máxima de prisão — 23 anos pelo crime de homicídio e três anos e dois meses por dois crimes de ofensas à integridade física — para Inês Sanches, Ana Pinto, Esmeralda Montes e Eduardo Montes. Em relação ao único arguido que aguardou a leitura do acórdão em liberdade, o Ministério Público considerou que não foi produzida prova suficiente durante o julgamento para sustentar a acusação dos crimes de tráfico de droga e de violação, deixando cair os crimes.

“Abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes”

Um dos testemunhos mais marcantes e mais esclarecedores neste julgamento foi o de João Ferreira dos Santos, perito do Instituto de Medicina Legal, que fez a autópsia ao corpo da criança. Este perito fez uma detalhada descrição da forma como terá morrido Jéssica e, por isso, foi possível perceber mais alguns pormenores, além daquilo que se tinha sido descrito na acusação pelo Ministério Público.

“O que matou a Jéssica foi, sem margem para dúvidas, aquilo a que chamamos de síndrome do bebé abanado. Foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes. Isso foi o que matou a Jéssica. Alguém, de uma forma selvática, agarrou na criança, seja pela parte torácica, ou pelos membros, e a abanou com força. Dois a quatro abanões por segundo durante cinco segundos chega para que a criança tenha lesões gravíssimas”, explicou João Ferreira dos Santos.

Julgamento pela morte de Jéssica. Criança “foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes e isso foi o que a matou”

À medida que iam mostrando as fotografias da autópsia, que mostravam as marcas da violência que Jéssica sofreu, o perito foi analisando cada parte do corpo da criança, sublinhando que “era difícil encontrar mais lesões traumáticas”. Foram encontradas marcas de unhas de adulto e lesões provocadas por puxões de orelhas — nestas lesões, os arguidos poderão ter utilizado uma tesoura e um alicate. E o perito confirmou ainda que Jéssica “não bateu com a cabeça só uma vez, bateu várias”. “Parece que andaram a jogar à bola com a criança. Atiraram-na, de certeza, contra a parede ou contra o chão”, acrescentou.

A dívida e as agressões que resultaram na morte de Jéssica

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado, que fala esta quinta-feira em tribunal. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.

As agressões, a droga e a inação de mãe de Jéssica. Acusação descreve os momentos que levaram à morte da criança de três anos

Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.