Perante a carência de médicos nos centros de saúde, o governo português tenta agora minorar o problema através da contratação de médicos estrangeiros, em países como Cuba e Brasil. Isto numa altura em que mais de 1,6 milhões de portugueses continuam sem clínico atribuído — o último concurso para colocação de médicos de família realizado voltou a deixar desertas a esmagadora maioria das vagas na regiões mais carenciadas do país, colocando, de novo, a descoberto as dificuldades de atração do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas o salário oferecido — ao nível de um médico especialista — e a eventualidade de poderem aceder a habitação do Estado estão a gerar críticas.

Sem perspetivas de um reforço significativo na resposta, nos próximos tempos, em regiões como Lisboa, Alentejo e Algarve (as mais críticas), o governo vira-se para o exterior e para países a que Portugal está habituado a recorrer sempre que a falta de médicos se intensifica, nomeadamente Cuba. Mas a contratação está a gerar críticas e preocupações, tanto no que diz respeito ao reconhecimento das habilitações dos médicos como ao salário oferecido pelo SNS a estes profissionais.

Contratação é de natureza “transitória”, garante Ministério

O Ministério da Saúde está a preparar a contratação de 200 a 300 médicos em países da América Latina para trabalharem em Portugal durante um período de três anos. Os profissionais serão recrutados em Cuba, na Colômbia e noutros países da região, como explicou no Parlamento, no final de julho, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro. “Não há muitos países do mundo que tenham disponibilidade. Todos os que conheço são da América Latina, Cuba, Colômbia e mais um ou outro país”, adiantou.

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O processo está a ser conduzido pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a entidade que tem a função de “desenvolver políticas de recursos humanos no setor da Saúde”, mas pouco mais se sabe.

Ao Observador, a tutela confirma que a ACSS “está a desenvolver os modelos de contratação relativos ao recrutamento de médicos no estrangeiro”, sendo que “neste contexto estão a ser testadas as condições que poderão vir a ser oferecidas”. Não se sabe, e o Ministério também não esclarece, quando poderão esses médicos começar a exercer em Portugal.

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Por outro lado, a tutela garante que se trata de “um processo de contratação de natureza transitória, que visa facilitar o acesso regular das populações a cuidados médicos, enquanto decorre o processo de formação dos necessários especialistas em Medicina Geral e Familiar e a generalização das Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B”.

Uma das questões que ficam por esclarecer no que diz respeito à contratação destes médicos é o reconhecimento do grau académico. Neste momento, todos os médicos estrangeiros, provenientes de países de fora da União Europeia, que queiram exercer em Portugal têm de ver o seu grau académico reconhecido por uma faculdade de Medicina portuguesa, o que implica terem uma avaliação positiva numa prova de conhecimentos, numa prova clínica e numa outra linguística. Têm ainda de apresentar uma dissertação de mestrado ou trabalho equivalente. Para os profissionais de países da União Europeia (UE), o reconhecimento é automático.

Faculdades e Ordem contra reconhecimento automático. Salário de 3.000 euros gera críticas

No entanto, não está excluída a hipótese de, numa situação excecional, os médicos contratados diretamente pelo governo em países da América Latina poderem obter esse reconhecimento de forma automática, dispensando a intervenção de instituições de ensino superior em Portugal, o que está a gerar críticas das faculdades e da própria Ordem dos Médicos. No início de julho, o governo aprovou, em Conselho de Ministros, um diploma que prevê um regime excecional de reconhecimento do grau académico conferido por instituições de ensino superior estrangeiras a médicos que venham trabalhar para o SNS.

O Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), órgão que representa as oito faculdades de Medicina que existem em Portugal foi chamado a pronunciar-se e enviou um parecer ao governo, onde se mostra contra o diploma, alertando que devem ser as faculdades portugueses a conceder os “reconhecimentos” de grau académico. “Não deve ser feito um reconhecimento automático, que também ainda não sabemos se é o que vai ser proposto”, disse ao Observador a presidente do Conselho de Escolas Médicas.

Helena Canhão explica que “há necessidade de haver um reconhecimento por parte de universidades portuguesas, de modo a garantir que os médicos têm habilitações para exercer Medicina em Portugal”. O órgão que dirige, adianta, “sugeriu ao governo a abertura de uma época extra de exames para poder avaliar todas as pessoas” que sejam contratadas.

No parecer, enviado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (que com o Ministério da Saúde está a gerir o processo), documento a que o Observador teve acesso, o CEMP sublinha também a importância “da aplicação dos procedimentos de avaliação a todos os candidatos nas exatas condições”, alertando para possíveis situações de desigualdade entre os médicos que já iniciaram o processo e os que vão agora ser contratados. “Outra solução não acautelará os princípios da igualdade, da equidade e do interesse público”, avisa.

Também a Ordem dos Médicos rejeita qualquer reconhecimento automático dos médicos de países da América Latina. “A Ordem é contra qualquer processo de facilitismo que não respeite a qualidade dos cuidados de saúde, que não respeite a segurança dos doentes, que não respeite uma avaliação muito rigorosa das habilitações dos médicos que vêm trabalhar para Portugal”, disse o bastonário, Carlos Cortes, à agência Lusa.

Ordem contra “facilitismo” na avaliação das habilitações de médicos estrangeiros

O recurso de Portugal aos médicos cubanos não é novo. Em 2009, era Manuel Pizarro secretário de Estado da Saúde, o governo de José Sócrates celebrou um protocolo com Cuba para trazer para várias zonas do Alentejo e Algarve cerca de 40 profissionais, de modo a suprir as carências nestas regiões — um problema antigo, que nunca foi resolvido, e que se agravou nos últimos anos.

Lisboa e Vale do Tejo, Algarve e Alentejo são, de longe, as regiões mais carenciadas e com maior número de população sem médico de família atribuído. Em julho, 1,6 milhões de portugueses não tinham médico, sendo que 1,3 milhões se concentravam nestas zonas — isto é, mais de 80% do total, segundo os dados que constam no BI dos Cuidados de Saúde Primários. É precisamente nestas regiões que os médicos estrangeiros serão colocados.

Concurso para médicos de família. Mais de 80% das vagas ficaram por preencher na região de Lisboa

Isto porque apesar das muitas vagas abertas, ao longo dos últimos anos, a colocação de especialistas portugueses não tem sido tarefa fácil. Exemplo disso é o último concurso aberto para contratação de especialistas em Medicina Geral e Familiar e cujos resultados foram conhecidos no final de maio. Na região de Lisboa, apenas 19% dos lugares foram ocupados, o que equivaleu  a 114 médicos — um número muito aquém das necessidades da região. E sabe-se que nem todos acabam por assinar contrato com o SNS, isto é, alguns desistem a meio do processo e acabam por nem sequer ser colocados. O Observador questionou a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, de modo a perceber quantos médicos foram efetivamente colocados, mas não obteve resposta.

No Alentejo e no Algarve, os resultados foram ainda piores: apenas 16% das vagas foram preenchidas (o que equivale a 14 médicos colocados no Algarve e cinco no Alentejo).

Para suprir as necessidades, e perante a incapacidade de atrair especialistas portugueses, o governo tenta também contratar médicos estrangeiros, nomeadamente brasileiros, para os centros de saúde destas regiões. No início de agosto, a ACSS fez publicar no Brasil, através das universidades, um anúncio oferecendo aos médicos brasileiros um vencimento 2.863 euros/mês e “casa de função”, como noticiou o jornal Público. Os contratos terão a duração de três anos e preveem a possibilidade de os profissionais poderem concentrar as 40 horas de trabalho semanais em apenas quatro dias.

“Não apostamos nos médicos de família que formamos em Portugal”, critica APMGF

Condições que causaram surpresa entre a associação que representa os médicos de família em Portugal. “Estamos a oferecer a médicos não-especialistas condições melhores do que aos médicos de família em Portugal. A remuneração que vão ter é igual às dos especialistas e parece que até temos casas de função para dar, o que nunca esteve em cima da mesa para os portugueses”, sublinha, ao Observador, Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

Estranhamos que, de repente, o Ministério da Saúde tenha esta solução na manga“, sendo que “nunca a usou para a carência grave de habitação em Lisboa e Vale do Tejo e que é um dos fatores que afasta os médicos desta região”, diz o médico.

O salário oferecido, lembra, é igual ao da primeira posição remuneratória de assistente, a primeira das três categorias da carreira médica, o que não faz sentido, defende, porque se trata de médicos não-especialistas, que “não concluíram qualquer internato” e “não são diferenciados”.

“Voltamos a insistir na solução errada de colocar nos centros de saúde nestas regiões médicos não-especialistas, ao mesmo tempo que não apostamos nos médicos de família que formamos em Portugal”, acusa Nuno Jacinto, alertando para a disparidade criada pela oferta de “cuidados de qualidade diferente a determinadas populações”.

Para Nuno Jacinto, a tutela conseguiria atrair médicos formados em Portugal para as regiões mais carenciadas, evitando a contratação de estrangeiros, se implementasse uma estratégia integrada, com medidas como o aumento da capacidade formativa (com condições de formação de médicos internos), horários flexíveis, disponibilização de casas de função, possibilidade de levar o cônjuge em condições preferenciais, o aumento das Unidades de Saúde Familiares modelo B (unidades que atualmente se concentram, essencialmente, nas regiões Norte e Centro).