O tempo é cura valiosa para muitos males. Pode ser um bálsamo que ajuda a sarar feridas profundas, ajudar a resolver problemas graves e a colocar em perspetiva a nossa posição na vida. Propriedades quase medicinais à parte, tem sido também tema explorado de forma célebre na música e é algo que ocupa um lugar central em Lofizera, disco de estreia da jovem banda de Lisboa, Veenho, o primeiro longa duração depois de seis anos a editar EPs e singles.
Mas desengane-se, este não é um disco que começa com o som de relógios ou coisa semelhante. A banda formada por Martim Brito (bateria), os irmãos António Eça (guitarra) e Xixo (baixo) e que contou com a ajuda de Gonçalo Formiga dos Cave Story, quis refletir sobre a forma como o tempo ajudou estes músicos a crescer, na sala de ensaios e nos concertos, mas também longe destes cenários.
Seja nas guitarras que piscam o olho ao shoegaze em insolência, nas melodias a tresandar a indie rock dos anos 1990 em maré alta, no dinamismo entre a calma e o ruído, aperfeiçoado por antecessores como os Pixies ou os Nirvana, os Veenho vão apresentando o seu variado espólio de influências como quem constrói uma enciclopédia rock’n’roll muito pessoal.
A capacidade para criar e desfolhar este manual foi algo que foram desenvolvendo ao longo do tempo e serve quase como um tributo para o que esteve na origem da banda: a amizade e a dedicação à causa musical. Romantismo de garagem, como se quer. “Eu e o António somos irmãos e o Martim era nosso vizinho. Durante toda a nossa vida sempre fomos muito amigos e algo que sempre tivemos em comum foi o nosso amor pela música”, recordou Xixo, em entrevista ao Observador. “Quando começámos a tocar, de forma autodidata, eu tocava bateria e não gostava nada de tocar sozinho, não encontrava aí grande sentido. Por isso, convidava o meu vizinho que tocava baixo [Xixo] para fazermos música juntos”, completou Martim.
Apesar de, nessa fase, ainda estarem longe do objetivo de lançar um primeiro disco de longa duração, os Veenho já tinham uma ideia do que pretendiam para as canções que haveriam de escrever. “Nunca tivemos muito o espírito de fazer longas sessões de improviso. Mesmo quando não sabíamos tocar, tínhamos sempre vontade de fazer canções sem pensar muito no assunto. Só queríamos ter material para gravar. Queríamos levar isto tudo para a frente”, explicou o baterista.
Nesta altura, o grande objetivo dos lisboetas era gravar o máximo de canções de forma a receberem o maior número de convites para poderem tocar ao vivo. À medida que o tal tempo — sempre o tempo — foi passando, entre vantagens e desvantagens, perceberam que esta filosofia não lhes enchia as medidas. Mas o que é que pretendiam afinal?
[“Lofizera” na íntegra, para ouvir através do Spotify:]
“Quisemos fazer uma pausa para pensar, para crescer e perceber se fazia sentido continuarmos como banda e de que forma”, confessa Martim. “Este disco é sobre esta fase. Foi um período que nos ajudou a crescer enquanto pessoas e como músicos, mas também como banda. As músicas falam sobre este percurso, sobre o nosso crescimento pessoal e enquanto banda que procura o seu som.”
É desta autorreflexão que surgem as letras de temas como “ex-punk” (“vai-se o tempo, acaba-se a vontade / incomodo-te no estilo que ganhei com a idade”), “maré alta” (“nem sei suavizar a mudança, não. / colei na insegurança / e quis ponderação”) ou “meio ausente” (deixei a pressa pra me resolver. / meio ausente, tento amanhecer”). “Queríamos mostrar o poder do tempo. Pode servir para ajudar a cicatrizar, mas também pode ser comprometedor, porque muitas vezes questionámo-nos se fazia sentido continuar com a banda ou se as nossas escolhas de vida estavam mais certas”, explicam os membros da banda.
O amadurecer também permitiu que os Veenho aperfeiçoassem o som que queriam apresentar. Noutros dias, os EPs do grupo revelavam uma estética lo-fi, rude, pouco domada e nada FM, porque — e apesar dos músicos se identificarem com esta estética — não tinham outra forma de fazer e gravar as canções. Agora, Lofizera, o álbum, soa assim porque era este precisamente o som que os lisboetas pretendiam.
“Tentámos retirar tudo aquilo que não nos pareceu fundamental”, esclareceu o baterista ao descrever este processo de criação musical, método que ficaria bem de braço dado com o minimalismo das criações de Iggy Pop e dos Stooges. “Perdemos muito tempo a polir cada canção. A maior parte das músicas eram maiores, mas quisemos retirar partes para ficarem exatamente como queríamos, de forma a reduzi-las à sua essência”, descreveu o músico. “Precisámos desta pausa para encontrar quem é que são os Veenho e porque é que faz sentido fazermos música. Continuamos a procurar a nossa identidade, mas pelo menos sabemos o que é que queremos fazer: esta dualidade entre caos e harmonia ou barulho e melodia”, diz o baterista.
Já que o tempo é um dos principais temas de conversa com os Veenho, quisemos também ir do particular para o geral, saber junto da banda como é que foram acompanhando as mudanças de uma cena musical lisboeta, a mesma que os criou. “Havia mais pessoas a querer saber o que estava a acontecer, havia mais preocupação”, expressou Martim de forma algo negativa. “Havia muitos putos, como nós, a fazer música e a ir a concertos. Hoje, não sinto que exista tanto essa vontade”, descreve: “Quando aparecemos, havia muito a acontecer e a aparecer. A maior diferença é a falta de noites organizadas por editoras independentes. Sentimos também a falta de muitas salas de concertos que na altura ajudavam a dinamizar a cena musical de Lisboa. Outras continuam abertas, mas já não têm a mesma vontade de chamar bandas pequenas para tocar”.
Ainda assim, Xixo explica como isto pode também ser uma oportunidade para o grupo. “Como existem menos bandas, isso permite-nos criar uma música mais personalizada, uma vez que não temos de seguir nenhuma tendência”, argumenta, acrescentando ainda que, tal como os Veenho não têm tanta vontade de estarem constantemente a dar concertos, talvez as outras bandas também não a tenham. Para já, o futuro espera, os lisboetas ainda não anunciaram novas datas para concertos, mas garantem que não teremos de aguardar outros seis anos para ouvir músicas novas: “Os nossos próximos trabalhos vão surgir mais cedo do que muitas pessoas podem esperar”, prometeu Martim.