Os responsáveis da associação Chelas é o Sítio acreditam que a realização de grandes festivais de música naquela zona de Lisboa, com artistas do bairro nos cartazes, ajuda na “mudança do estigma” que paira há décadas sobre Chelas.

O Parque da Bela Vista acolhe, entre esta quinta-feira e sábado, a 2.ª edição do festival Kalorama, que estabeleceu uma parceria com a Chelas é o Sítio e conta com três artistas do bairro, escolhidos pela associação, no cartaz. O mesmo já tinha acontecido no ano passado naquele festival e também no Rock in Rio Lisboa. O Parque da Bela Vista situa-se na freguesia de Marvila, na zona oriental da cidade, território do qual faz parte Chelas.

A realização destes dois festivais naquela zona da cidade “acima de tudo ajuda na mudança do estigma”, defendeu um dos fundadores da Chelas é o Sítio, Ricardo Gomes, em declarações à Lusa.

O regresso do Kalorama: 15 concertos para ver no festival

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A associação, que conta com o rapper Sam The Kid entre os fundadores, nasceu precisamente com o propósito de combater esse estigma, numa altura em que os bairros de Chelas, identificados com letras, como zona J, zona M ou zona I, ganhavam novos nomes, atribuídos pelo poder local, entre os quais bairro da Flamenga e bairro das Amendoeiras.

A palavra Chelas era quase proibida“, recordou Ricardo Gomes. “Esse estigma foi combatido, e conseguimos. Agora, como é óbvio, há muito mais para fazer. Há uma intervenção importante para fazer nas escolas, a nível social, a nível dos bairros, faltam parques infantis, espaços verdes”, disse.

Nuno Varela, também da associação, salientou o facto de hoje em dia os festivais não serem “só música, bebida e diversão”. “Há toda esta parte social, a parte da sustentabilidade, que está por trás e começa meses antes de o festival acontecer, que vai criar estas dinâmicas todas e esta pressão que é necessária, para se calhar as coisas começarem a mudar a nível interno, mesmo na educação, e termos outras ferramentas para dar aos miúdos aqui dentro do território”.

Fundador de uma das mais antigas plataformas de divulgação da cultura hip-hop em Portugal, “Hip-hop sou eu”, Nuno Varela acredita que o impacto do Kalorama e do Rock in Rio naquela zona da cidade “é grande a todos os níveis”, antes de mais para os moradores: “Porque o berço é palco de um dos grandes festivais do país“. Já a nível artístico, tendo em conta a parceria com a associação, “o impacto é superior”.

“Para estes artistas, tendo a exposição que vão ter, num palco tão grande e num festival com esta dimensão, é um marco para sempre”, disse, admitindo que isso não quer dizer que “todos os que estão presentes no Rock in Rio ou no Kalorama venham a ter uma carreira de sucesso, cabe também muito ao artista o aproveitamento que vai ter depois deste impacto”.

Este ano, atuam no Kalorama, no âmbito da curadoria Chelas é o Sítio, Rato Chinês, Gui Aly, Necxo e Snake Gr, e no que depender da quantidade de artistas que Chelas alberga haverá para vários anos de festivais.

“Felizmente para nós existe muito artista [em Chelas]. É um bairro que tem muita capacidade criativa e muito artista. Há muita gente e muito mais gente para vir. Fazemos mais dez festivais e com certeza teremos mais 20 ou 30 artistas que poderão estar aqui”, referiu Ricardo Gomes.

“Miúdos que têm 12/13 anos estão a ver outros, de 17/18 anos, a ter esta oportunidade, e acabam por pensar ‘é possível, se calhar isto é possível‘. Uma criança tem que sonhar e esse sonho tem que ser possível, eles não podem achar que é impossível. Muitas vezes, especialmente num bairro como o nosso, os sonhos são mais difíceis. Parece que não querem deixar as crianças sonhar, e nós queremos exatamente o oposto”, referiu Ricardo Gomes.

Para ele, Nuno Varela ou Sam The Kid são “exemplos de sonhos concretizados” de artistas que cresceram em Chelas. O simples facto de atuarem num festival não chega. “Como é óbvio, têm que trabalhar. Não é só chegar aqui e vai correr tudo bem na carreira deles. Vai vir da força e da resiliência deles, atingir o que querem no futuro. Estarmos a conseguir abrir estas portas é muito bom, pode acelerar o processo, mas é preciso batalhar”, disse.

Nuno Varela considera que “ainda é um bocado cedo” para perceber se os artistas já beneficiaram de ter o nome no cartaz dos festivais, até porque as parcerias começaram apenas no ano passado.

“Já temos artistas que estão a ter uma boa exposição e continuam com datas, não sabemos se está ligado diretamente a terem estado numa curadoria de Chelas é o Sítio, mas acredito que muitas das pessoas que passa por aqui futuramente irão ter uma carreira de sucesso dentro do mundo da música”, afirmou.

O festival Kalorama começou esta quinta-feira. O recinto abriu às 14h00 e pelos quatro palcos vão passar, entre outros, Blur, The Prodigy, Pongo, Rita Vian, José González, M83 e Metronomy.

Até sábado, o cartaz inclui Florence + The Machine, Aphex Twin, Arcade Fire, Capitão Fausto, Dino D’Santiago, Belle & Sebastian, Eu.Clides, The Hives, Pablo Vittar e Júnior Boys.