Os arqueólogos que investigam a presença de escravos africanos no Vale do Sado entre os séculos XV e XVIII encontraram vestígios que podem evidenciar “um passado ainda ocultado” da História de Portugal, disse à Lusa o coordenador da investigação, Rui Gomes Coelho.

Isto é o que nos interessa realmente: estudar estas pessoas que estão ocultas, ou quase ocultas, da documentação histórica. São situações que existem na memória popular, dos antepassados que viviam nas cabanas [Alcácer do Sal], mas essas pessoas e a experiência de vida dessa gente está ausente da documentação histórica”, disse o arqueólogo Rui Gomes Coelho da Universidade de Durham, Reino Unido, e do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.

“A função social da arqueologia em Portugal é também dar visibilidade à experiência de vida destas pessoas (africanos e afrodescendentes), e construir um arquivo de experiência e de memórias que estão completamente ausentes do arquivo das elites que dominam a nossa memória histórica”, acrescentou referindo-se a Portugal.

Durante o passado mês de agosto, a investigação localizada no Monte do Vale de Lachique, junto a São Romão do Sado, Alcácer do Sal, permite concluir, “numa primeira fase”, que a estrutura terá sido construída no final do século XV, ou no início do século XVI, e que “deve ter sido sujeita” a uma reforma no século XVIII.

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Os arqueólogos dirigidos por Rui Gomes Coelho e Sara Simões detetaram ainda “uma pré-existência romana, provavelmente uma vila (edificação rural)”.

Não encontrámos estruturas mas encontrámos material arqueológico que mostra que o local estava ocupado naquela época. Trata-se de uma situação muito interessante porque, tal como investigadores como Jorge Alarcão [Coimbra] já estudaram, existe a ideia, do ponto de vista da lógica social, de que os montes alentejanos sucedem aos latifúndios romanos”, explicou Gomes Coelho.

Por outro lado, na zona estudada, verificou-se “um grande hiato” entre a época romana e o século XV, o que demonstra o provável abandono da região durante um longo período.

Os investigadores estudam paralelamente “o desbravamento do Vale do Sado, no século XV“, após a chegada dos escravos africanos.

Existem também provas documentais que apontam neste sentido […] sobretudo na zona da herdade de Rio de Moinhos no século XVI, e que corresponde ao período em que estão a entrar muitas pessoas escravizadas em Portugal através do Alentejo”, explica o arqueólogo.

No passado mês de agosto foi iniciado igualmente o processo de estudo sobre a possibilidade de existência de estruturas “onde as pessoas relatam a existência de aldeias de cabanas que estão associadas à memória dos africanos e descendentes dos escravos naquela região e que viviam nas margens das grandes propriedades.”

Este projeto arqueológico no Vale do Sado envolveu diretamente, desde o início, a Djass – Associação de Afrodescendentes, a Associação Batoto Yetu Portugal, a Câmara Municipal de Alcácer do Sal e a Associação da Defesa do Património de Alcácer do Sal.

O projeto mais amplo enquadra-se na investigação “Ecologias da Liberdade: Materialidades da Escravidão e Pós-Emancipação no Mundo Atlântico”, que pretende entender os impactos do colonialismo e da escravatura no meio ambiente e tentar saber de que forma as pessoas deram “evidência a uma ideia de liberdade com base nos constrangimentos sociais” que foram impostos pela escravatura.

Os arqueólogos tentam comparar o Vale do Sado e Cacheu na Guiné-Bissau, onde efetuaram investigações em 2022, numa antiga casa comercial que atualmente é o Memorial da Escravatura, e também nas sondagens no rio Cacheu, no norte da Guiné-Bissau.

Em Cacheu funcionou, durante o período colonial português, “um dos portos negreiros mais importantes da África Ocidental, que serviu o tráfico de escravos” e de onde foram trazidas muitas pessoas para Portugal.

Nós estamos a fazer um projeto em que todas as partes contam. Do meu ponto de vista o que faz falta é resolver as desigualdades sociais que continuam a marcar a sociedade portuguesa, do ponto de vista étnico-racial, étnico económico e social”, afirmou Rui Gomes Coelho.

As primeiras conclusões desta investigação vão ser apresentadas em novembro, no Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses, em Coimbra.