“Eu vou fazer você cantar ‘você'”. Foi essa a missão que Caetano Veloso impôs a si mesmo, quando ouviu os motivos para a fadista Carminho “evitar” a palavra correntemente usada no Brasil. O compositor não só conseguiu que esta gravasse a canção “Você-Você”, presente no seu mais recente álbum “Meu Coco”, lançado em 2021, como que o acompanhasse nos dois concertos que deu este fim de semana, no Coliseu de Lisboa.
“Como comento no vídeo da nossa conversa, a letra surgiu a partir das gravações que Carminho fez em ‘Carminho Canta Jobim’, em que evita a palavra ‘você’, pouco comum para os portugueses. A partir das nossas trocas, entendi o seu ponto de vista, ao mesmo tempo que pude enriquecer a minha argumentação. A canção é um passo a mais no meio dos nossos papos sobre o Português Brasileiro e o de Portugal”, referiu numa publicação de Instagram, em que mostra um pequeno excerto da atuação do passado domingo.
O músico de 81 anos refere-se ao seu mais recente vídeo publicado no Youtube, retirado do documentário “Caetano Explica Meu Coco”, lançado em maio deste ano, que remete para uma conversa com a fadista portuguesa em setembro de 2021, no Atlântico Blue Studios, em Paço de Arcos.
Para isso, Charles Gavin, músico e produtor brasileiro, encarnou o papel de entrevistador e pediu a Caetano um contexto para a presença de Carminho no tema.
“Na verdade, ela entrou, porque já estava dentro da canção. Nasceu por causa dela”, explicou o compositor, que atuará esta terça-feira, no Coliseu do Porto. Nesse momento, voltou a destacar o referido na publicação na rede social, relativamente à conversa de ambos, em que Caetano “meio reclamou, meio perguntou”, sobre os motivos para não usar a palavra ‘você’.
Com base nisso, escreveu a canção “Você-Você”, um diálogo “entre Brasil e Portugal, sobre a língua portuguesa”. E convidou Carminho para representar uma das partes.
“Fiquei emocionada quando soube que a canção tinha nascido de uma discussão que, na verdade, me fez crescer imenso”, começou por contar a fadista de 39 anos. “É um encontro comigo e com os meus fantasmas”, explica a rir-se.
“Não uso ‘você’, por uma razão muito simples de explicar, mas que, no Brasil, é muito difícil de entender. Em Portugal, usamos essa palavra quando nos dirigimos a alguém a quem temos respeito ou, quem sabe, não conheçamos”, continuou.
Nunca me dirigia com ‘você’ a quem amo. Se estiver a dirigir-me a uma pessoa amada, quero que a pessoa acredite em mim quando digo que a amo. Por isso, tinha de a tratar por ‘tu'”, confessou Carminho.
“Tu tens de arranjar um namorado brasileiro para desmistificar essa história do ‘você'”, respondeu Caetano, segundo as palavras de Carminho. Não foi preciso. Bastou um “fado brasileiro” para que esta ecoasse esse termo.
As “fissuras gigantes” entre Portugal e Brasil que se juntam numa única palavra
Para Carminho, a palavra ‘você’ representa algo muito maior do que o transmitido pelos brasileiros. “É engraçado, porque os dois países têm tantas semelhanças e, ao mesmo tempo, essas fissuras gigantes em termos de entendimento. Estão a dizer a mesma palavra, mas a significar mundos completamente diferentes”.
É isso que o tema de Caetano retrata, especialmente na última estrofe, que é “quase impossível de explicar”, como refere quando Charles Gavin pede para relatar o significado.
“No final, a letra fica mais radicalmente poética. Cada palavra sugere muita coisa”. Apesar disso, o compositor de êxitos como “Sozinho” e “Você É Linda” consegue “arrancar” o significado de algumas expressões usadas.
O verso “Tu és você”, além de ser o “resumo” da discussão de ambos, quase foi o título do tema. “Disseram-me que o Chico Buarque tem uma canção com esse nome — apesar de a dele ter a vírgula, em vez do hífen — e era para não ficar parecidíssima com a dele. Mas não quis gastar essa frase”, explicou.
Acabou por ficar com o título original e colocou o verso a anteceder uma das maiores referências ao fado português. O nome de Amália Rodrigues surge seguido de quatro grandes compositores brasileiros — Ary [Barroso], Noel [Rosa], Tom [Jombim] e Chico [Buarque] —, mas não pelos mesmos motivos.
A Amália surge não como a sua pessoa, mas como um género. Ela é como se fosse o fado”, destacou.
Ainda assim, não era por referir uma das maiores fadistas portuguesas que Caetano Veloso sentia que tinha escrito um fado, especialmente porque, na sua opinião, faltava um ingrediente fundamental.
Quando o compositor chegou ao pé de Charles Gavin e confessou que tinha escrito um “fado brasileiro”, a palavra bandolim, instrumento de cordas brasileiro, fez-lhe uma certa comichão. “É difícil encontrar alguém que toque guitarra portuguesa no Brasil. Mas também não quis que ficasse uma reprodução do fado português. Quis que parecesse uma coisa minha”, acrescentou.
Já Carminho, compositora de temas como “Estrela” e “Meu Amor Marinheiro”, tem um conceito diferente do género musical: “Aquilo que determina o que é um fado não tem propriamente a ver com a presença da guitarra portuguesa. Essa faz parte da linguagem do fado, mas o que o define é a secção rítmica”, descreve.
“O que mais me surpreendeu quando ouvi primeiramente a canção do Caetano foi o acompanhamento rítmico. A viola dele estava com uma sensibilidade e uma ‘puxada’ do fado”, rematou a artista.