A quem está aí desse lado: temos as nossas divergências. É natural, vem com a profissão. Quem escreve sobre televisão vê, em princípio, mais televisão do que o leitor. Por ver mais, também vê muita coisa de que não gosta, muita coisa má (duas coisas diferentes) e quando chega ao dia em que é preciso escrever sobre um desses dois universos — aquilo de que não se gosta / aquilo que é claramente mau — muita coisa acumulada vai cair nas palavras e nas frases. Quando as opiniões se encontram, o leitor tem um amigo (e o crítico também). Quando não se encontram, o leitor acha que o crítico ou é um tipo frustrado, um avençado qualquer do sistema (seja lá o que isso for) ou um incompetente (também pode ser).
Eis uma coisa de que pouco se fala nesta relação mas que é comum tanto a quem critica como a quem lê (e que também critica, ainda que de outra forma): a experiência, a quantidade de horas em frente à TV, que geram uma espécie de instinto. Por vezes, sabemos que “há ali qualquer coisinha” e isso leva-nos a continuar a ver séries que, por vezes, têm primeiros episódios fracos. A indústria quer chamar a atenção do espectador em minutos, em segundos até. Se não funciona, é descartável, segue-se para o próximo produto. O espectador tem outras coisas para fazer, não se dá ao luxo de se aborrecer a ver televisão para depois ser surpreendido. Mas, o crítico sim. O crítico deve. E é essa linha que separa ambos. O aborrecimento também é um ofício, um que por vezes soa a privilégio. E para fundamentar uma ideia muitas vezes é preciso atravessar o deserto do aborrecimento.
Isto tudo para garantir: “Wolf” (que se estreia esta quinta-feira, 14 de setembro, na HBO Max) não vai ser fonte de aborrecimento. Mas é muito possível que o primeiro episódio tenha sabor de engano e que isso seja desmotivador. Estou aqui para assegurar o contrário. “Wolf” é um thriller a sério e faz uma coisa rara na ficção televisiva de hoje: responde a todas as questões que levanta. E faz isso acontecer em simultâneo com uma carrada de twists, muitos deles inesperados, todos eles a fazer sentido. Até aquele que surge nos últimos instantes da série.
[o trailer de “Wolf”:]
Megan Gallagher, responsável por adaptar “Wolf” para televisão, falou connosco via Zoom há uns dias e é genuína a recusar os créditos sobre o bom funcionamento de tudo isto: “A história é baseada no livro da Mo Hayder. Estou a trabalhar o que ela escreveu. As personagens vêm da cabeça dela, apenas tive o prazer de trazer isso para televisão. Tenho de lhe dar crédito. Antes que perguntes, não conhecia os livros dela, mas devorei-os assim que Wolf me chegou às mãos. E ainda tive o prazer de falar com ela [Hayder morreu em 2020].”
Mo Hayder criou Jack Caffery em 2000 (Wolf é o último romance da personagem), uma figura rodeada de violência e crimes hediondos. Jack é detetive e na televisão é interpretado por Ukweli Roach, que dá uma dimensão muito terrena ao protagonista. É um detetive diferente dos outros, não bebe, mas o que bate mais é uma sombra do passado: Jack acredita que o vizinho da casa ao lado dos seus pais raptou o seu irmão e o matou. Há razões para ter esta suspeita, o vizinho foi preso por pedofilia e há imagens na cabeça do protagonista que confluem para essa ideia. Será verdade ou imaginação? Por simpatia e humanidade, acredita-se na primeira, mas há qualquer coisa em Jack que também diz que pode estar a exagerar — a mesma coisa que faz com que as suas relações não funcionem.
“Ele é um millennial. Há muitas histórias de detetives, mas são personagens com 45, 50 anos. Têm casamentos falhados, relações estranhas com os filhos. Bebem demais. Tudo isso é OK, essas histórias podem ser fenomenais, mas já as vimos várias vezes. Gosto que ele tenha 32 anos. Não tem não tem vícios, ainda não tomou as grandes decisões da vida: não se decidiu se quer um parceiro, se quer filhos ou mesmo que tipo de detetive quer ser. E queria trabalhar uma personagem que tem de tomar essas decisões pela primeira vez, ao invés de trabalhar um mundo em tudo isso já está criado, um mundo em que o protagonista já tomou essas decisões. Gosto muito que ele seja jovem.”, diz mais à frente Gallagher.
Surge a pergunta: “Gosta do ‘Brincadeiras Perigosas’?” É inevitável trazer o filme de Michael Haneke à conversa. “Wolf” desenvolve-se com duas histórias em paralelo. De um lado, dois tipos Molina (Iwan Rheon, o Ramsay Bolton de “Guerra dos Tronos”) e Honey (Sacha Dhawan) fazem-se passar por dois detetives para entrar numa casa familiar. Sequestram a família e ficamos grande parte da série sem saber que intenções andam por ali: a suspeita sempre presente é a de que são uns criminosos que cometeram um crime hediondo no País de Gales há cinco anos. O comportamento deles, sobretudo nos dois primeiros episódios, lembra o dos invasores de ”Brincadeiras Perigosas“. Sem se saber a real razão do crime, é fácil construir a ideia de que estão a fazer aquilo por puro divertimento. Joga-se bem com isso, apesar de o início — o tal primeiro episódio — tornar a coisa um pouco dissuasora. Há um vazio na ideia de concretização que parece uma falha no argumento (mas não é). Megan ri-se porque não é a primeira vez que lhe fazem essa pergunta: ”Nunca o vi. E, quando me disseram que havia semelhanças, fiz questão de não o ver para não ser influenciada”.
A outra história em paralelo é a do detetive. A constante procura da culpa do vizinho leva Jack a dar de caras com um antigo conhecido que lhe pede um favor, procurar uma pista que está num bilhete num cão que encontrou no campo. O motivo é absurdo — lá está, tem que se vencer o primeiro episódio e aceitar o que aí vem — até para Jack, que tem zero fé na coisa. Mesmo assim, persegue o arco-íris, que o leva a uma investigação em que participou no passado e a uma série de situações peculiares: raves com cobras, malta fanática de armas que vive à beira de um lago e uma experiência com drogas que envolve crocodilos. Quando se fala destas coisas, Megan volta a rir-se, sobretudo quando se diz que “muitas coisas são absurdas, ridículas”: “Percebo o que queres dizer, é suposto ser exagerado. É suposto tudo ser exagerado. A história do Jack anda na terra, contudo, e o facto de teres um protagonista assim, com uma história que te toca no coração, com sinceridade, traz algum equilíbrio.”
Uma história persegue a outra. O presente é o de Molina e Honey, Jack está uns dias atrás e, à medida que os episódios avançam, ele aproxima-se mais da linha temporal do que está a acontecer no momento. Cria-se assim um thriller intenso, porque a questão está sempre no ar: “Será que Jack vai chegar a tempo?”. O primeiro episódio engana, é uma rasteira. Pensar nele depois de ver os outros cinco é um belíssimo exercício, porque reconfigura tudo aquilo que se pensou inicialmente sobre as personagens: o que parecia muito sério, cai logo no território do humor negro.
E talvez seja isso. Há pouco hábito de ver thrillers que se fundamentam a si mesmos, que respondam a questões e que tratem o público com o respeito que merece — o público que é mais inteligente e perspicaz do que muitas vezes a indústria considera. No fim, “Wolf” faz sentido e cumpre a sua maior função: é um entretenimento dos diabos. Voltando aos críticos, de certeza que já leu algum a dizer que “vi isto para você não ter de ver”. Eu vi “Wolf” de uma assentada para garantir que este é daqueles thrillers/policiais/histórias de detetives que tem mesmo de ver. E, se não concordarmos, não concordamos. A vida é assim.