“Sabemos que Shakespeare ocupa, na imaginação da humanidade culta, um lugar à parte” — escreveu Jorge de Sena com melíflua ironia — “mas em lugar de entendê-la na sua substância procuram maravilhar-se com o que lá não está (…) ou o que só eles creem nela descobrir”. Ora se “o maior escritor que a humanidade produziu” continua a projetar o seu vulto enorme sobre o mundo, mais de 500 anos após a sua morte, é porque ele era “teatro feito gente e sabia melhor que ninguém o quanto gente é teatro”, notava ainda Jorge de Sena, que nunca se cansou de admirar este poeta tornado dramaturgo e que traduziu, como poucos, tragédia e o mistério de uma humanidade sem bondade, presa entre os horrores convocados pelo desejo de poder e a melancólica fuga para a fantasia, único lugar onde o perdão e a redenção parecem ser possíveis.
É porque soube embrulhar estas pequenas e grandes tragédias, simultaneamente individuais e coletivas, numa poesia e numa musicalidade densas, onde ritmo e verbo servem de canal por onde flui um conhecimento complexo, feito de intuições, experiências, pensamentos abissais, que William Shakespeare continua a ser nosso contemporâneo e a falar ao século XXI, como falou ao Renascimento, pois apesar de construir mais sofisticados artefactos, o Homem continua igualmente preso às suas circunstâncias e ao seu carácter.
Foi nessa espantosa fonte de inquietação, tragédias e comédias que é a obra Shakespeariana que dois encenadores portugueses beberam para colocarem em palco duas peças no mínimo provocadoras, que rejeitam deixar o bardo inglês entregue à “humanidade culta” e o trazem à arena das pessoas comuns para falar de guerra, de poder, de ocupação de terra, dos que perderam e dos que se perderam mas também do amor, da fantasia e os limites do Teatro. A primeira é A Tempestade, testamento poético de Shakespeare que, entre 1925 e 26, o compositor finlandês, Jean Sibelius redimensionou criando para ela uma música incidental, que se tornou um clássico pela forma como o ritmo e o verbo interagem para contar a história de Próspero, o amargurado mágico de uma ilha deserta sedento de vingança.
Foi em 2018 que o encenador António Pires e o maestro Cesário Costa tiveram a ideia de encenar uma versão de música/teatro de Sibelius em Portugal, numa grande produção que conta com um coro participativo de 44 elementos, cantores do Teatro Opereta de Kiev, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, os atores do Teatro do Bairro e do Theatro Circo de Braga. São quase 100 pessoas num palco, onde ressoa a guerra na Ucrânia, mas também as guerras civis de Angola e Moçambique, o colonialismo e a condição dos refugiados, sem qualquer sentimentalismo próprio dos que querem responder mais às necessidades do público que da arte.
“Estou aqui a encenar A Tempestade e tenho o Rogério que é preto e viveu a guerra civil como eu e os cantores e atores ucranianos, que se habituaram a trabalhar no intervalo dos bombardeamentos. Não tenho respostas para isto. Só tenho duvidas. Mas também não acredito que a arte seja para encontrar soluções e sim para colocar questões” afirma ainda Pires. A estreia acontece esta quarta-feira, 13 de setembro, no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde fica até dia 24, seguindo depois para Braga.
E, se em A Tempestade, o ator de origem moçambicana, Rogério Boane, será o primeiro negro a protagonizar uma peça de Shakespeare em Portugal, no teatro da Trindade, Diogo Infante promete pôr muita gente de cabelos em pé ao transformar a comédia Sonho de Uma Noite de Verão num musical paredes meias com o festival da Eurovisão, onde nos propõe encontrar o “bardo do Avon” nas canções de Marco Paulo, Clemente, Ágata, José Cid, Trovante, Heróis do Mar, Paulo de Carvalho ou das Doce, enquanto jovens, belos atores e atrizes cantam, dançam e desfilam num aparatoso e hipercolorido guarda roupa que desafia identidades sexuais, temporais e espaciais.
Assumindo “um desejo de provocar e de deixar algumas carapuças para serem postas nas cabeças onde elas sirvam”, Infante parece ter tido especial prazer em roubar Shakespeare à tal “humanidade culta” de que falava Jorge de Sena, para chamar um público que procura, primeiro lugar, divertimento, talvez depois erudição. O resultado surge em forma de viagem pela música popular portuguesa das últimas décadas. Música do cancioneiro português das últimas quatro décadas, no meio da qual esta peça, que os críticos literários definem como “uma fantasia total”, por vezes perde o seu eixo shakespeariano e se inclina perigosamente para uma certa gratuitidade. É provável que no final saia a cantarolar “Ninguém, ninguém poderá mudar o mundo” e concorde que Marco Paulo ou Clemente sempre foram muito mais shakespearianos do que se poderia pensar mas que da peça renascentista leve muito pouco.
Afinal se há autor cuja plasticidade da obra permite sempre novas abordagens é Shakespeare. Porém, nem sempre estas abordagens são boas traduções da obra do dramaturgo, mas, tantas vezes, apenas papel para embrulhar uma falsa criatividade e algum narcisismo.Não parece ser este o caso, pois embora, Diogo Infante opte por explorar sobretudo a juvenil doçura desta história de amores desencontrados, fadas, elfos, ingénuos aspirantes a atores, nunca perde de vista uma ideia que atravessa muitas obras do bardo inglês e que surge, curiosamente, resumida no epilogo final de A Tempestade: “Nós somos aquela trama/ em que os sonhos se fazem; e a nossa pouca vida é rodeada de sono”. Este musical estreia no dia 21, no Teatro da Trindade, em Lisboa e fica em cena até 26 de Novembro.
As muitas partituras de um Shakespeare musical
Para muitos ele é apenas o romântico autor de Romeu e Julieta, para outros o dramaturgo-filósofo que criou Hamlet. Para poucos ele é sobretudo um poeta que deixou uma vasta criação lírica hoje quase esquecida. Já Jorge de Sena insistia que ele era, antes de tudo, um poeta e só depois um dramaturgo e que só a primeira condição explica a segunda. Assim, sendo antes de mais um poeta, o ritmo e a musicalidade faziam parte da essência da sua escrita. E, como notou o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, “é a partitura que mantém as suas obras vivas e frescas”. É provável que o compositor Jean Sibelius, com a sua música severa “como um copo de água gelada”, tenha compreendido com sensibilidade e rigor o ritmo intrínseco a esta Tempestade, criando mais do que uma simples banda sonora, mas uma tradução da linguagem verbal de Shakespeare em linguagem musical fazendo com que a última e, para muitos, a mais enigmática peça do dramaturgo inglês, ganhe contornos de ópera. Para isso contribuem os cantores e cantoras do teatro Nacional Opereta de Kiev. Anastasya Martyniuk (Ariel), Kateryna Yasenchuck (Juno) e Volodymir Odrynskyi (Caliban), que trazem nas suas vozes portentosas a experiência de mais de um ano de guerra na Ucrânia, que nunca sendo o centro, nem a finalidade do espetáculo nele ecoa com lúgubre uivo calado.
Quando a peça começou a ser pensada, em 2018, não havia no horizonte nem uma pandemia nem a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em cinco anos o mundo mudou e esta Tempestade convocada por um mágico irado parece ter-se abatido sobre todos nós. No entanto, António Pires ressalva, que o objetivo da peça “não é falar da guerra da Ucrânia”, ainda que ela lá esteja, tal como estão imagens de um mundo distópico, com gente perdida, gente sem casa, sem lugar, sem poder. Ainda que tenha uma feição épica, que o guarda roupa tenha muitas vezes as cores azul e amarelo esta encenação não visa ser uma denuncia. Pois para António Pires a ideia mais importante n’A Tempestade ” é o perdão” e o perdão como forma mais radical de liberdade.
São grandes e misteriosas peças, com vigorosa amarga poesia e o mistério delas reside na ambiguidade da atmosfera opressiva em que as envolve um poeta que deixou de acreditar na bondade humana.”
[Jorge de Sena, “A Literatura Inglesa”]
Sendo a peça com a qual Shakespeare se despede dos palcos e do mundo, ela não podia deixar de ser também uma reflexão sobre o Teatro e a relação mágica que ele convoca junto do público. É desse acordo tácito entre público e atores que a magia pode acontecer pois o palco só existe enquanto o público acredita que aquilo que ali se passa é verdade. É o teatro como mundo e o mundo como teatro, numa fantasia que visa chegar ao conhecimento da realidade.
É também através das potencialidades da música para abrir e redimensionar o verbo que Diogo Infante entra em Sonho de Uma Noite de Verão. Nas comédias como nas tragédias o olhar de Shakespeare denuncia sempre a sua aguda compreensão de como o mal e a morte imprimem uma marca indelével e fatal em cada existência humana. Assim, mesmo nesta história de enamoramento e amor, onde os desencontros apenas servem para tornar mais intensos os reencontros, uma história de liberdade sem qualquer compromisso que não seja a imaginação, o pensamento e o encanto, o escritor não deixa de falar da guerra que corre no reino das fadas, entre Oberon e Titânia, e não deixa de ironizar sobre os policias do gosto através dos populares que querem ser atores e tentam encenar a história de Píramo e Thisbe, sob os olhares condescendentes dos aristocratas. Esta peça dentro da peça acaba por ser talvez a mais coesa e divertida desta versão feita por Diogo Infante.
Como nota Jorge de Sena, Shakespeare nunca esteve interessado em criar personagens coerentes e verosímeis, mas antes “em exemplificar como as fatalidades internas e externas condicionam um destino”. Por isso, mais do que um musical, ou uma armadilha musical para incautos esta peça, que já foi reinventada por Ingmar Bergman mas também por Woody Allen, este Sonho de Diogo Infante, funciona sobretudo como uma saborosa desforra contra os que acham que o mundo se divide entre alta e baixa Cultura.
“A Tempestade” tem récitas entre 13 e 24 de setembro. De quarta a sábado às 2o horas e domingos às 17h30. A duração do espetáculo é de 2 horas e 10 minutos com intervalo.
“Sonho de Uma Noite de Verão” estará em cena entre 21 de setembro e 26 de novembro. Récitas de quarta a sábado às 21 horas e ao domingo às 16h30. A duração da peça é de cerca de 2 horas.