Chega a Portugal esta semana, através do serviço de streaming Sky Showtime a série Poker Face, lançada no início do ano na Peacock da NBC. Criada por Rian Johnson, é uma espécie de homenagem a uma era longínqua da televisão dos anos setenta e oitenta, embora a sua ação se passe no nosso tempo.
Johnson, que realizou o controverso The Last Jedi, oitavo episódio da saga de Star Wars e acabou por não seguir com a sua trilogia anunciada nesse universo, é claramente um apaixonado pelo género do mistério e do crime. O seu primeiro filme, Brick (2005), introduziu um jovem Joseph Gordon-Levitt como um detetive de liceu num cenário noir escolar e mais recentemente reinventou o género do whodunnit com o divertido Knives Out e sua sequela, além de ter realizado alguns dos episódios mais aclamados de Breaking Bad.
Agora com Poker Face, Rian simplifica a fórmula e faz regressar o género clássico do “crime da semana” que se tornou popular em séries como Columbo e Murder, She Wrote há mais de quarenta anos. Numa altura em que os criadores sentem a necessidade de tornar as tramas cada vez mais complicadas (o que nem sempre equivale a interessantes) na tentativa de surpreender o espectador a cada final de episódio e nos manter presos para o próximo, Johnson opta pelo caminho inverso.
[o trailer de “Poker Face”:]
Para isso criou Charlie (Natasha Lyonne, de Orange is The New Black e Russian Doll), a nossa personagem principal, uma mulher com um talento único – ela sabe sempre quando alguém está a mentir. A origem deste super-poder nunca é explicada e em poucos minutos do primeiro episódio (um dos três realizados pelo próprio Rian Johnson num total de dez) já nos sentimos familiarizados com o desabafo de “bullshit!” dito por Charlie entre dentes cada vez que alguém não lhe conta a verdade. No entanto, esta habilidade que tanto jeito daria a um polícia ou detetive privado nem sempre se revela conveniente à nossa Charlie. (aqui num momento de introspeção pessoal, sinto que ser um polígrafo humano seria coisa para trazer mais tristezas que alegrias na vida real).
Antes dos eventos da série começarem, a protagonista tentou tirar partido dos seus talentos em jogos de poker privados, com sucesso, até ser apanhada por um dono de casino num torneio em sua propriedade. Se há coisa que a cultura cinematográfica nos ensinou é que raramente os magnatas de casinos acham muita graça a truques com o seu dinheiro. Ainda assim, este deu-lhe emprego no bar, a troco de que Charlie não voltasse a tentar das suas. Quando a sua melhor amiga e colega de trabalho é assassinada, Charlie foge, perseguida por polícia e capangas do casino, numa viagem pela América profunda e o tal mistério-da-semana que conheceremos a cada episódio.
Para tirar proveito de Poker Face é preciso encarar um facto inescapável – é uma série formulaica, embora por opção e não por preguiça criativa. Cada episódio, ao contrário do que nos habituámos em televisão, começa com o crime a acontecer e com o espetador a ver como e por quem foi cometido. Segue-se um passo atrás no tempo, entre poucas horas e alguns dias, e descobrimos como Charlie e a vítima se cruzaram (não deixa de ser sinistro a quantidade de gente que morre pouco depois de a conhecer) e, posteriormente, a tentativa desta de juntar as peças do puzzle e devolver alguma justiça ao universo, resolvendo o caso. No final da trama, Charlie segue a sua fuga/viagem para outro paradeiro onde mais ou menos o mesmo se repete no episódio seguinte.
Com uma estrutura tão firme, como é possível que Poker Face funcione? (e sim, é tempo muito bem passado).
Em primeiro lugar, Natasha Lyonne eleva um papel bem escrito a outro nível, com uma prestação que lhe valeu a nomeação ao Emmy (cuja entrega foi adiada deste verão para janeiro de 2024 devido à greve de guionistas de Hollywood) para Melhor Atriz em Série de Comédia. A sua voz inconfundível e timing impecável fazem de Charlie uma das melhores surpresas televisivas de 2023. Rian Johnson e os restantes guionistas e realizadores também conseguiram popular este universo com personagens secundárias ricas e interessantes e uma lista de elenco convidado de luxo para lhes dar vida – nomes como Adrien Brody, Ellen Barkin, Joseph Gordon-Levitt, Chloë Sevigny ou Nick Nolte.
Com diálogos deliciosos (polvilhados com alguma profanidade), ritmo rápido e uma excelente banda sonora, Poker Face consegue fazer o espetador esquecer que já sabe a resposta às perguntas “quem?” “como?” “quando?” e “onde?” desde os primeiros minutos e simplesmente apreciar a viagem. A repetetividade da fórmula poderá afastar algumas pessoas de chegarem aos episódios mais tardios e a série por vezes peca por algumas resoluções mais convenientes do que lá muito credíveis, sendo que o fio condutor do arco narrativo da temporada (a perseguição do chefe de segurança do casino a Charlie) é frequentemente esquecida e abandonada até quase ao derradeiro episódio.
Dito isto, a simplicidade nostálgica que permeia a série (a começar pelo genérico) e o carisma infinito com que Natasha Lyonne vai desarmando os mentirosos com que se cruza e juntando as peças do puzzle homicida durante quarenta e cinco minutos semanais valem muitíssimo a pena para quem gosta de um bom crime da variedade ficcional e não real. Um exercício giro para ir acompanhando a série é reparar nas vezes em que alguém engana a nossa protagonista porque, apesar se estar a ser desonesto naquele momento, tecnicamente não mentiu, escapando ali à deteção de Charlie (jogo que os guionistas certamente estavam constantemente a fazer durante a escrita).
Logo em março, após boa receção de público e sobretudo crítica, a Peacock anunciou a renovação para uma segunda temporada, embora a situação atual de Hollywood não permita saber uma data concreta por agora. Ao fim dos dez episódios fiquei já com vontade de voltar à estrada e resolver mais crimes com Charlie pelas profundezas da América e acreditam que isto não é bullshit.