Entre vários segredos que são descritos para explicar o sucesso da Jumbo-Visma está inevitavelmente aquilo que já se tornou regra entre os principais corredores de elite: o cuidado com a alimentação. Tudo é visto com um pormenor e um rigor a nível de quantidade e qualidade que talvez há uma década fossem impensáveis de imaginar no mundo do ciclismo. Aliás, não eram mesmo imaginados. Afinal, foi há uma década que o último norte-americano ganhou a Volta a Espanha, aquele que era tudo menos amigo das dietas. “Sim, grande parte do que dizem sobre mim na Vuelta que ganhei é verdade. Comi 12 hambúrgueres nos dias antes das etapas de alta montanha, davam-me mais força e não me faziam nada mal…”, confessou Chris Horner numa entrevista à Marca. Agora, há outro compatriota no topo do mundo. Que tem todos esses cuidados que antigamente pareciam uma miragem mas que em parte simboliza também aquilo que faltava no ciclismo.

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Sepp Kuss, conhecido também como o miúdo de Durango, a águia de Durango ou simplesmente o carteiro por entregar sempre a horas as encomendas que tem em carteira, tinha tudo para ser aquele corredor que ia simplesmente cumprir a sua obrigação de ser um super herói na sombra daqueles que vestem a capa e fazem as capas de jornais. Tinha sido assim no Giro, tinha sido assim no Tour, sempre com sucesso garantido. Em Espanha, a etapa com chegada ao Observatório Astrofísico de Javalambre mudou esse contexto. Depois, os dias foram passando com o norte-americano a guardar a vermelha como se estivesse a segurar um molde para entregar a um dos líderes. Apesar de ataques inesperados, não aconteceu. E aquele gajo porreiro que muitos dizem não ganhar mais por ser porreiro a mais acabou a fazer história e a mostrar a todos os bons gregários que o seu dia de glória à frente e não atrás dos líderes está ao virar da esquina.

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As imagens após a chegada a Angliru são um exemplo paradigmático do que é Sepp Kuss, o corredor que fala espanhol como poucos pensariam também por ser casado com uma antiga corredora, Noemí Ferré. O norte-americano poderia estar furioso pela forma como Primoz Roglic e Jonas Vingegaard foram embora quando mais precisava, poderia estar renitente em relação ao final da Vuelta tendo em conta a diferença diminuta que tinha na liderança, poderia estar eufórico por aguentar a camisola vermelha perante a pressão do dia mais complicado que enfrentara até aí. Por ventura, estaria tudo isso e muito mais. No entanto, quando tudo terminou e antes daquele habitual período de recuperação, fez questão de ir ter com Mikel Landa da Bahrain, espanhol que ajudou quase no “reboque” até à meta. “Desculpa, não queria passar à frente no sprint mas eu precisava daqueles segundos de bonificação”, explicou antes de abraçar o adversário feito aliado. “O que posso comentar? Acho que diz muito sobre quem ele é”, elogiou Landa depois aos jornalistas.

Aos 29 anos, Sepp Kuss teve o ano de completa afirmação dentro daquilo que todos já tinham percebido há muito estar ali. Após ter experimentado o esqui cross-county, o ciclismo de montanha e até o hóquei em gelo, o norte-americano acabou por fixar-se no mundo das bicicletas sendo algumas vezes campeão nacional no ciclismo de montanha quando estava na Universidade de Colorado. Foi nessa altura que, quando lhe fizeram o desafio de escolher uma pessoa com quem almoçar, nomeou de pronto Peter Sagan. Contudo, ao contrário do eslovaco que se tornou um dos sprinters com mais vitórias no World Tour, foi nas etapas de montanha que viria a encontrar o seu lugar de conforto, primeiro na Rally Cycling e a partir de 2018 na LottoNL que veio depois trocar de nome para a Jumbo-Visma. Agora, após ter ganho pela primeira vez uma etapa do Tour e de ter volta a ganhar uma tirada na Vuelta, saiu mesmo vencedor da Volta a Espanha.

“Não esperava estar numa situação destas. O carinho do público a crescer? É algo que quase me faz chorar”, tinha dito numa entrevista a Alberto Contador no Eurosport quando tinha a vermelha praticamente segura. “A razão para as pessoas gostarem de mim? Porque sou humano, porque sou um globero, um noob. Porque sou mais um ciclista do que um corredor”, atirou na zona de entrevistas rápidas após confirmar o triunfo com os companheiros Vingegaard e Roglic a fecharem o pódio. Com a humildade dos deuses e a audácia os terrestres, Kuss assumia-se quase como alguém com o ADN de quem nasceu para fazer ganhar, mais do que ganhar ele próprio. Agora, virou essa ideia. Apesar de ter ainda na cara as marcas da queda grave na penúltima etapa do Tour que provocou mazelas com gravidade, tornou-se o primeiro a fazer as grandes voltas ganhando a última, o primeiro a fazer parte de uma equipa a vencer as grandes voltas num ano e o segundo norte-americano a ficar com a Vuelta (Gastone Nencini correu as três em 1957 e ganhou o Giro).

“Ainda tenho cicatrizes daquela queda no Tour, tenho de pôr todos os dias pensos novos porque causa do sol que apanhamos”, explicava antes de uma entrevista ao El País dada na manhã do dia consagração. “Quando foi a etapa de Javalambre só sabia que queríamos entrar na fuga mas mais para ajudar os meus líderes, na tentativa de colocar pressão na Soudal Quick-Step e no Remco [Evenepoel], que era o nosso maior rival na altura. Durante a etapa senti-me muito, muito bem, com pernas para ganhar. Levava um ano ou dois sem ganhar nada individualmente. Gosto muito do meu trabalho como gregário mas ganhar é especial. A partir daí, tudo mudou. A vantagem podia ter sido maior mas na fuga estavam também o Enric Mas e o Mikel Landa, havia gente com muita qualidade e o Roglic e o Vingegaard não estavam”, explicou o corredor.

“Antes do Angliru houve uma reunião entre nós em que acordámos mais ou menos as coisas assim mas não esperava que fossem continuar a pressionar com força na parte plana depois do topo. Quando estava nesse momento da corrida só pensava ‘Vou perder a camisola vermelha e é justo mas…’, depois olhei para a etapa e era uma pena… Se o Landa me salvou? Sim, sim, sim… Também sabia que estava a fazer a sua corrida e que era um rival mas no final acabou por ajudar-me…”, admitiu, antes de falar do “ponto mais alto da carreiro e um momento inesquecível”: “Surpreendi-me a mim mesmo pela forma como consegui controlar as coisas ao longo da corrida, a pressão, os rivais fora da equipa, a última semana. Se vou ser um joker no futuro? Isso. O meu papel pode ser de um corredor que não tem nada a perder ou jogar um pouco com as características que tenho mas as outras equipas agora sabem que também posso ganhar grandes voltas”.