Olhar para o problema da habitação em Lisboa a partir do contributo dos arquitetos e da arquitetura na paisagem urbana da cidade. É esta a proposta da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, numa exposição intitulada Habitar Lisboa.
Debruçando-se sobre o passado, o presente e o futuro de vários projetos que, ao longo de quase seis décadas, foram mudando o rosto da capital portuguesa, a exposição junta várias disciplinas e linguagens — da arquitetura à geografia, da sociologia à paisagística — para tentar pensar um caminho que permita solucionar o problema da habitação, não esquecendo o papel dos decisores políticos e económicos, realçando sempre a importância que os arquitetos podem ter nesta dinâmica.
A ideia para a exposição surgiu há cerca de dois anos e o timing da sua inauguração, numa altura em que o CCB se prepara para inaugurar o novo Museu de Arte Contemporânea, confere-lhe uma “importância adicional”, segundo Delfim Sardo, administrador do espaço cultural. “Não podia haver uma situação mais urgente de ser debatida e analisada neste momento”, disse.
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A exposição compreende um período de várias décadas, começando nas cheias de Lisboa, em 1967 — a “primeira revelação” do problema da habitação, segundo a curadoria — atravessando depois todo o período revolucionário e pós-revolucionário, até chegar à atualidade e a algumas das questões sociais e propostas mais urgentes dos nossos dias, em que as palavras de ordem não são assim tão diferentes das que ecoavam pelas ruas no seguimento do 25 de Abril de 1974.
A arquitetura e os arquitetos são, neste contexto, apresentados como uma das chaves que pode desbloquear do problema e por oferecer a resposta para atingir metas como a da construção de 26 mil fogos até 2026, defendeu Marta Sequeira, coordenadora do programa de doutoramento em Arquitetura Contemporânea da Universidade Autónoma de Lisboa e curadora da exposição.
“Se se desse maior liberdade aos arquitetos, claramente conseguiríamos fazer essa experiência com todo o sucesso. Pensemos, por exemplo, no processo SAAL, onde foi implementado um sistema construtivo que estava parado nos armazéns, alterando todo o projeto para que se pudesse construir rapidamente”, disse.
O SAAL, um programa estatal de construção habitacional surgido após a Revolução de Abril por iniciativa de Nuno Portas, primeiro secretário de Estado da Habitação do Portugal democrático, é uma das iniciativas habitacionais recordadas na Garagem Sul. A viagem pela história da arquitetura contemporânea portuguesa salienta ainda projetos como o bairro da Pantera Cor-de-Rosa, que atravessou o período de transição do regime da ditadura para o da democracia, o Quarteirão da Rosa, que na década de 1980 veio pôr em causa a lógica de construção em altura com “uma maior aposta na densidade”, o prédio no Largo do Conde Barão, na viragem para o novo milénio, quando a autarquia de Lisboa tentava trazer novos moradores jovens ao centro histórico da cidade, ou, mais recentemente, o projeto atualmente em curso no Bairro da Boavista.
Os exemplos escolhidos obedecem a uma lógica dupla, respeitando por um lado a sua importância histórica e, por outro, a diferença de abordagens dos vários arquitetos por eles responsáveis, numa tentativa, de acordo com Marta Sequeira, de mostrar que “não há apenas uma solução para o problema”.
Neste sentido, a exposição inclui também uma ala dedicada a projetos não-construídos, contemplando várias visões diferentes sobre a problemática e uma série de “dimensões de futuro” que permitam projetar os próximos anos. “Abrimos até espaço à participação de estudantes. Há aqui dois projetos que são de estudantes, que nos falam de várias questões, da pré-fabricação à flexibilidade das habitações, uma série de questões que são relevantes para pensarmos os edifícios que vão, efetivamente, ser construídos”, disse a curadora.
A própria escolha do espaço de exibição, na Garagem Sul — uma antiga garagem para carros, repensada por José Adrião para se tornar em espaço artístico — é, segundo Marta Sequeira, uma tentativa de mostrar o impacto que os arquitetos podem ter na paisagem urbana e na própria cidade. “Este espaço é ilustrativo do poder transformador dos arquitetos, e devia ser estendido ao problema da habitação”, considerou.
As várias maquetes dos projetos são acompanhadas de suporte de fotografias ou excertos de filmes, de que é exemplo Arena, de João Salaviza, ambientado na arquitetura do Bairro da Flamenga, em Chelas. Mapas da Área Metropolitana de Lisboa oferecem dados estatísticos que ajudam a explicar os dilemas da habitação. Numa outra parte da exposição podemos ver vídeos em que sociólogos, arquitetos paisagísticos e outros profissionais descrevem, em três minutos, a sua visão sobre a problemática.
Há, inclusive, espaço para destacar projetos internacionais, de países como Espanha, Países Baixos ou Argentina, que responderam ao problema habitacional que se vinha colocando naqueles países — o intuito é, precisamente o de oferecer uma visão global que mostre que “Portugal não está sozinho” no combate a este tema e que inclua várias disciplinas, reflexo de um problema que é, também ele, multidisciplinar.
“A pessoas têm cada vez mais consciência de que é preciso arquitetura, querem ter um espaço pensado para elas”, referiu a curadora, dando como exemplos os recentes protestos pelo direito à habitação da plataforma Casa Para Viver (cujas imagens, a cores, fecham o ciclo da exposição e fazem um paralelo com os protestos a preto-e-branco de há quase cinco décadas).
Questionada sobre de que forma os futuros moradores poderiam ser envolvidos no desenvolvimento de projetos arquitetónicos futuros, Marta Sequeira apontou algumas iniciativas já existentes. “Por um lado, há que criar grupos de discussão, para formar uma ligação mais direta com os futuros moradores, lançando-se concursos, por exemplos. Depois há outras hipóteses, como a construção com cooperativas o que, aliás, já está a ser pensado — há projetos que preveem pegar em terrenos públicos e dá-los ou vendê-los a preços muito reduzidos, para a construção de coletivos de pessoas que se organizam.”
Neste âmbito, insistiu, o fomento de um espaço de debate é também um passo essencial, e uma razão pela qual este Habitar Lisboa não se esgota na exposição. A iniciativa inclui ainda um programa paralelo com fóruns e espaços de debate que, ao longo das próximas semanas, deverão expor várias visões diferentes sobre o problema da habitação, contando com a participação, por exemplo, da rede de cooperativas de habitação Co-Habitar. “As pessoas já perceberam que o Estado pode não conseguir resolver tudo. E também perceberam que, se se juntarem, podem ajudar a resolver um problema que é individual, mas que também é coletivo”, referiu.