Há poucas semanas, algumas das críticas a Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese, apontavam as mais de três horas como um problema. A duração de qualquer filme tem muito que se lhe diga, contudo, nos dias do streaming. os número fazem pensar. Uma das reflexões possíveis tem a ver com a ideia abstrata de comparar o tempo com o dinheiro gasto. No cinema, a relação direta é feita com o bilhete, mas nestes dias muitos cinéfilos são-no a partir do sofá. Em casa, o tempo ganha uma existência própria, concreta, deixa de ser abstrato. Na sala de cinema, o tempo fica à porta, não tem lugar. Com o streaming, a métrica que conta está nos minutos que passamos a ver qualquer coisa, acumulados, por toda a gente, quer vejam ou não até ao fim. Parece a mesma coisa, mas não é.
E é também essa uma das reflexões que fazemos a propósito de Toda a Luz que Não Podemos Ver O maior problema da série está no tempo e na quantidade de episódios para contra uma história da forma como esta é contada. Não é que não haja muita coisa a acontecer nesta adaptação do romance homónimo premiado com um Pulitzer de Anthony Doerr — há, mas chegado ao fim do último episódio há uma sensação agridoce (estamos a ser simpáticos), o clímax torna-se inexistente precisamente pelo tempo que demorámos a chegar ali. Não estamos a falar de oito ou doze episódios, mas apenas quatro, de uma hora cada. Mas o carácter minissérie de Toda a Luz que Não Podemos Ver começa a ser questionado a meio do segundo episódio quando se torna claro que cada capítulo se move por um tópico e não consegue ir além disso: não se comprime, não se intensifica, alastra-se o ócio de dizer pouco em muito tempo.
[o trailer de “Toda a Luz que Não Podemos Ver”:]
A história original — a do romance de Doerr — é belíssima. Junta a riqueza do imaginário da rádio como meio de comunicação a mensagens codificadas durante a Segunda Guerra Mundial; uma jovem cega, Marie-Laure LeBlanc (interpretada pela atriz Aria Mia Loberti), que vê o mundo através das histórias da tal rádio; um jovem órfão feito soldado alemão que encontra a figura paternal nas emissões de rádio de Etienne LeBlanc (Hugh Laurie); e um diamante misterioso que está amaldiçoado. Há mais além disto, mas aqui está o basilar para criar várias histórias que correm na mesma direção e que vão sendo contadas em períodos temporais diferentes.
Essa parte é uma das mais valias do romance e é também uma das da série. A forma como os diferentes tempos, com todas as personagens, se intercalam está bem trabalhada e cria uma dinâmica interessante na narrativa. Faz com que não se sinta que se está a ser puxado para um objetivo, vive-se mais como uma história a ser contada. Aqui podia-se alegar que a gestão do tempo em quatro episódios se justifica, mas não, podia-se cortar imensa gordura que existe na história de Werner Pfennig (Louis Hofmann), o jovem soldado, cuja paixão pela rádio e a razão para estar onde está, naquele momento, poderia ser resumida num par de cenas e em boas linhas de diálogo, ao invés de excesso de conflito e artimanhas narrativas a suplicar pelo interesse do espectador. Reconheçamos: há potencial de interesse, mas é enterrado em diálogos unilaterais que estabelecemos com a televisão sem darmos por isso. Algo como: “já entendemos, agora anda lá para a frente”.
Porque o cerne da história está na rádio, na forma como as transmissões de Etienne LeBlanc enchem o imaginário de desconhecidos em ambos os lados da guerra e, em simultâneo, oferecem um escape para fugir aos traumas que o próprio home da rádio tem enquanto soldado da Primeira Guerra Mundial. Apesar de nunca se tirar essa importância à adaptação de All the Light We Cannot See, por vezes somos distraídos da importância — e da beleza — da comunicação e da mensagem por causa do excesso de trama para justificar as quatro horas.
O diamante que foi há pouco referido é central na história. É um elemento místico na narrativa que nunca tira a história do lugar mais terreno. É uma peça que foi entregue a Marie pelo seu pai, Daniel (Mark Ruffalo), que a resgatou do Museu de História Natural de Paris, onde trabalha. Nem ele nem as pessoas do museu queriam que caísse em maus erradas, por isso, Marie e Daniel saem de Paris com uma missão para lá da sobrevivência. Há nazis que querem esse diamante e por isso perseguem-nos. No presente da história, Daniel já não faz parte da vida de Marie, teve de fugir com a promessa de que regressaria. Por isso, quando vemos Marie a fazer emissões de rádio, ocupando o lugar de Etienne, no início da história, ela também o faz para o seu pai a ouvir, saber que está viva, alimentando a esperança de que ele um dia irá voltar. Também há um nazi atrás desse diamante, mas tal missão nunca se aspeto dominante na narrativa, apenas ocupa tempo.
É aqui que se manifesta o maior problema de Toda a Luz que Não Podemos Ver: a trama ocupa mais espaço físico do que mental. Está lá em excesso, consolida a ideia de que se esta minissérie fosse um filme com menos do dobro da duração teria mais impacto. Especialmente o último episódio — preocupado em encerrar tudo e justificar o tempo que passou, deixa a sensação de repetição. É pena, porque a matéria-prima é boa.