Desde o início da pandemia que as entrevistas ou conferências de imprensa online se tornaram norma. A coisa costuma estar bem arranjada, normalmente entra-se numa sala virtual, a entrevista começa breves momentos depois, para não se perder um segundo naqueles dias em que realizadores, atores, produtores e argumentistas têm dezenas de entrevistas com jornalistas de todo o mundo. Desta vez foi diferente, uma daquelas exceções. Entra-se na sala via Zoom e do outro lado Chuck Lorre e Nick Bakay estão a falar. E este é daqueles momentos em que um tipo dá graças por seguir com intensidade, com muitas noites mal dormidas, a época de futebol americano. Bakay está a explicar a Lorre o que aconteceu no jogo da noite anterior (os Jets tinham perdido contra os Chargers, equipa de Los Angeles, onde Lorre e Bakay vivem e onde a nova série Bookie acontece) e parece bastante feliz.

Na cena que abre Bookie, uma personagem — um dos vários cameos que vamos manter em segredo para não estragar os “olha quem é ele” do primeiro episódio“ — está a ser expulso de casa por causa do dinheiro perdido em apostas e, já no carro, antes de ligar o motor, telefona ao seu corretor (Danny, o protagonista, interpretado por Sebastian Maniscalco) e aposta em três jogos de futebol americano. A cena é direta, a linguagem perfeita e há um domínio da situação raro. Por isso, arranca-se a entrevista a Lorre e Bakay com esse tema, se aquele sorriso se deve a ter apostado no jogo da noite anterior. Nick chega-se à frente: ”O Chuck não aposta, se calhar é por causa disso que tem muito dinheiro. Mas eu sim… e isso é algo que me fez alinhar neste projeto. O futebol americano é o rei das apostas na América e aqui toda a gente é como eu: somos grandes, comemos muito queijo, jogámos futebol na universidade e, por isso, temos a mania que sabemos como se joga profissionalmente, tal como aquelas pessoas que se chegam perto de nós nos eventos e explicam como os nossos programas deveriam ser. E sim, ganhei na noite passada.“

O sorriso expande-se. No primeiro episódio de Bookie percebe-se que a equipa se divertiu muito com tudo isto. A série passa-se em Los Angeles e, durante trinta minutos, os protagonistas, Danny e Ray (Omar J. Dorsey), ex-jogador de futebol americano, braço direito/segurança de Ray, não param pela cidade, seja para entregar televisões a familiares ou para encontrar clientes com dívidas pesadas e antigas. Bookie é escorreito e, de certa forma, tem um tom HBO que a faz distanciar das séries mais populares de Chuck Lorre — mas também não tem aquele middle of the road que resultou tão bem em The Kominsky Method. O “tom HBO” tem a ver com a sensação de constante imprevisibilidade, de que tudo é possível e de que as personagens nunca irão cair no esperado.

[o trailer de Bookie:]

Talvez seja o tema: “É algo que acontece fora da lei, é algo ilegal que a polícia não tolera. Não podes escrever no teu IRS que és um corretor de apostas. É uma profissão que existe para lá das regras, todas as transações são feitas em numerário. E se te acontecer algo, não podes ir à polícia. E tem a sua própria linguagem”. Chuck Lorre viu aqui uma forma de conciliar o seu permanente apetite em fazer do estranho coisa familiar, em criar personagens com as quais, em papel, teríamos alguma distância, mas ao vê-las em contexto, reconhecemos a proximidade: “Têm problemas no casamento, um familiar insuportável. Essas coisas universais. Toda a gente tem família, problemas com saúde e dinheiro. Isso, espero, é a porta de entrada para Bookie, quer faças apostas ou não.”

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No meio da conversa, Lorre considera que, como criador e argumentista de sitcoms, se sente como uma espécie em vias de extinção (tal como os corretores de apostas em Los Angeles com a legalização no setor e, por isso, Bookie é também uma série sobre um universo que está a acabar). Mas pensa nisto da forma certa: “Quando escreves uma história, tens que fazer algo que achas que funciona. Assumir que sabes o que a audiência quer é errado e arrogante. Sei o que me faz rir, o que gosto, e tenho de ser verdadeiro com isso. Com sorte, haverão mais como eu. É tentativa/erro.” Bookie é familiar. Tudo aquilo que Danny e Ray fazem, no contexto do seu trabalho, é algo que já se experienciou. Mas a mestria não vem daí, vem da empatia que se cria de imediato com as personagens. Por exemplo, com Ray, um tipo que se teve de adaptar à realidade de uma carreira — a de jogador de futebol — que não correu nem terminou como desejaria e, agora, faz o que faz como uma espécie de cobrança de erros do passado na esperança de que recupere um pouco do estilo da vida que perdeu.

Los Angeles parece um pátio. As personagens conduzem numa cidade sem fim, certo, mas os locais onde param, as personagens que conhecem, e como conhecem, comprimem essa sensação de enormidade numa redoma de vidro: as situações, os problemas, as tensões giram à volta de Danny e Ray e isso afeta tudo em que tocam. Há sempre algo que tem uma consequência: “Queremos fazer comédias com personagens de que gostamos, queremos que elas vençam, sejam felizes, mesmo aquelas deploráveis. Numa comédia é suposto ríres-te, se não te ris, se calhar não é o teu tipo de comédia ou então é só uma comédia merdosa. Por vezes é só isso, é muito má. Mas não há nada mais difícil do que ver uma comédia falhada. É terrível. Mas pronto, todos achamos piada a diferentes coisas. Eu rio-me de coisas que não têm piada para outros e, claro, há um problema geracional e cultural: o que tem piada em Los Angeles pode não ter em Portugal.” Mesmo com séries como A Teoria do Big Bang Dharma & Greg ou Dois Homens e Meio no currículo, Lorre ainda sente que pode falhar.

E quando é que sabe que acerta? Voltamos à tal “tentativa/erro”. Lorre lembra-se do piloto de A Teoria do Big Bang: “Há uma altura em que o Jim Parsons [Sheldon] explica porque é que aquela cadeira é dele e porque é que se senta ali… é um monólogo de meia página, que foi filmado em frente do público. Quando estava a ver aquilo a acontecer percebi que algo de notável estava a acontecer. Era óbvio. Mas este sentido é uma coisa rara…” A primeira temporada de Bookie é composta por oito episódios, que estrearão ao ritmo de dois por semana. Os primeiros já estão disponíveis na HBO Max.