Mulher Vida Liberdade marca o aniversário da morte de Mahsa Amini, uma estudante iraniana que, a 16 de Setembro de 2022, foi espancada até à morte pela polícia religiosa em Teerão. O seu crime é um escândalo, de tão nada criminoso: Mahsa não usava o lenço que se impunha às mulheres pela República Islâmica. Aliás, até o usava, mas não o usava da forma exacta como era imposto. Foi o que bastou, tanto para ser levada, espancada e assassinada como para acordar facções de um país e a comunidade internacional. A violência foi tão descabida, o resultado foi tão trágico, que protestos eclodiram por todo o Irão, contando com solidariedade internacional.

Na altura do primeiro aniversário do acto, que marcou também o aniversário do início de um movimento político e social, Marjane Satrapi reuniu ilustradores para fazer esta edição. Mulher Vida Liberdade traz dezenas de histórias de dezenas de autores e ilustradores, reunindo nomes como, além do de Satrapi, o de Abbas Milani, historiador, de Farid Vahid, politólogo, e de Jean Pierre Perrin, jornalista.

O papel de Satrapi, autora de Persépolis (2000), nascida no Irão em 1969, foi o de coordenar a edição. O nome da autora, aqui coordenadora, não passa ao lado: além de Satrapi ter tratado da introdução e de ter trabalhado uma das histórias, tem peso simbólico por ter sido, no âmbito da publicação em romance gráfico, um fenómeno de exposição da vida do Irão a partir de 1979.

O objectivo da publicação do livro que aqui trazemos está longe de ser o entretenimento. Há uma tentativa clara de informar o leitor e de com ele dialogar, voltando-se os textos para o leitor coetâneo. Não é que cada fragmento traga uma aula de história: em vez disso, situa o leitor num episódio, mostrando os mosaicos de um país. Com o trabalho de vários autores, temos não apenas a história do movimento criado após a morte de Mahsa Amini, mas também a contextualização do cenário político, a sua história com alcance no passado e ainda as figuras que, de alguma forma, têm contestado os poderes e a legitimidade, ou falta dela, do regime autocrático.

Título: “Mulher Vida Liberdade”
Coordenação: Marjane Satrapi
Tradução: Inês Fraga
Editora: Iguana
Páginas: 288

Ao mesmo tempo, nota-se, pela forma como os autores tentam colar esses fragmentos, resultando tal num todo orgânico, que o público-alvo é o não-iraniano, o que implica a abertura da realidade de um país, já tão fechado, para o exterior. Ao mesmo tempo, e porque abre essa janela para a percepção e o diálogo internacionais, o livro combate o acantonamento de um país. Ao longo dos 25 textos, o leitor vai vendo desfiar-se a história do Irão desde a instauração do regime teocrático até aos eventos pós-morte de Mahsa Amini. Com isto, não se fixa num ponto, dedicando-se a episódios e a costumes emblemáticos de uma Estado ditatorial, que vive sob o cacetete de uma polícia dos costumes e de uma máquina de propaganda a funcionar a todo o gás ao seu serviço.

Salta à vista ainda, durante a leitura, a multiplicidade de elementos visuais e textuais. A estética é muito variada, tanto nuns termos quanto noutros. Cada autor/a escreve a sua história, e os traços gráficos também são distintivos. Assim, não se lê o livro de forma plácida, antes sem se saber exactamente o que virá. Sabe-se, no entanto, que se contará com uma coisa múltipla: para além de múltiplas visões sociais e políticas, temos ainda uma multiplicidade artística condensada num volume, que não é coisa de somenos. O tamanho de cada peça também varia, havendo histórias que se bastam em apenas duas páginas.

Ora, esta ideia de variedade traz a sensação de que o livro tem dentro de si não apenas um testemunho da vida de um país, mas uma visão caleidoscópica sobre essa vida, e isto partindo de um contexto em que um regime teocrático se tenta fechar dentro das suas fronteiras, dificultando o acesso à informação – seja dos residentes no país, seja de quem está no exterior, que fica sem um registo das violações dos direitos humanos. Ao dar vários olhares, também se mostra aberto aos vários públicos, e quem lê conta com histórias com muito texto e pouca imagem e vice-versa, com cor e com preto e branco, com traço fino e traço grosso, num compêndio que se volta para adultos e crianças.

Mulher Vida Liberdade não serve para entreter. Há demasiada vida nas suas páginas. Quem lhe abre as folhas, mais do que um livro, vê gente e um país. E, depois de ter visto, não dá para fingir que aquela realidade, que em Portugal parece tão distante, não está lá. Chega a escandalizar que o mundo ali escrito e descrito esteja à distância de umas horas e uns voos.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia