A primeira impressão de Benny Safdie na pele de Dougie Schecter, produtor de um programa — Fliplanthropy — dentro de um programa — The Curse — para a HGTV — canal verdadeiro, de decorações de casas e afins —, temo-la através do cabelo. Longo, encaracolado e oleoso. Desleixo e atitude escondem um rosto tímido, ingénuo e indefeso. O tipo de cabelo onde se poderia encontrar umas quantas pipocas coladas. Há qualquer coisa de desonesto nele, de trapaça, de faz de conta nisto tudo, porque o cabelo, aquele penteado, não parece coisa verdadeira. Quando fala do trabalho no passado, existe uma confissão de desonestidade; quando fala da mulher — morta num acidente de carro em que ele ia a conduzir — a culpa está ausente em favor de uma vontade de simpatia; quando se abre a alguém, fá-lo a fim de conseguir informações que possa usar no programa que está a produzir.
A quem conhece Safdie — realizador de Good Time, Diamante Bruto ou Vão-me Buscar Alecrim, em parelha com o irmão, Josh — isto tudo parecerá estranho de início, mas ficará assimilado à medida que se avança em The Curse, uma das séries mais faladas nas últimas semanas e que, finalmente, chega a Portugal, no catálogo do serviço SkyShowtime (a partir desta sexta-feira, 5 de janeiro). Benny Safdie assina esta criação juntamente com Nathan Fielder e, aos dois, junta-se Emma Stone para formar o trio central da série. Fielder, conhecido por “apresentar” programas como Nathan for You ou o brilhante The Rehearsal, mas também por ter descoberto o talento que cria e faz brilhar How To With John Wilson, está aqui também num corpo estranho, não a fazer de uma suposta versão sua em frente à câmara, mas uma personagem. Ele é Asher Siegel, que vive na ideia de se concretizar, alguém que quer muito acontecer.
[o trailer de “The Curse”:]
Asher é casado com Whitney (Emma Stone), herdeira de um enorme património imobiliário. Logo no início o espectador é avisado de que os pais fizeram — e continuam a fazer — coisas questionáveis e que o jovem casal se quer separar disso. Para isso, conhecemos a comunidade que Asher e Whitney estão a querer construir em terra de americanos nativos. Querem gentrificar sem destruir e estão dispostos a tudo para passar essa mensagem e fazer prevalecer uma ideia de harmonia entre ricos e pobres: dispostos a fazer passar a mensagem, claro, não necessariamente a concretizá-la. A mensagem é Fliplanthropy, um logro para apresentar boas intenções, a construção de casas sustentáveis, passivas e caríssimas, para casais que, como eles, querem ser mais uma impressão do que uma realidade.
Emma Stone domina a série, mas fá-lo graças a Nathan Fielder, cuja personagem é o acessório perfeito, ainda que inesperado. Asher tem, tal como o pai de Whitney, um micropénis. Poderia ser algo irrelevante, não fosse essa uma das primeiras informações que nos é dada, logo no primeiro episódio. O micropénis trabalha na mente de Asher, não da forma como se pensam estas coisas, mas como termo de comparação com o pai de Whitney, aquele que lhes deu o património que têm de gerir. O sogro conseguiu aquilo tudo com um micropénis, Asher quer fazer mais, sem deixar um rasto de injustiça e malvadez. Só que não consegue. Não consegue engravidar Whitney, as suas relações são metódicas e desligadas, tal como tudo o que fazem juntos. Não consegue defender-se, agindo com frequência como um inapto,vitimizando-se. Não consegue resolver problemas, mas cria outros, fruto de inaptidão e do desencontro com a realidade. E, sobretudo, não consegue a emancipação de carácter.
Aqui entra a maldição do título. Uma miúda — que é também filha de um dos inquilinos dos Siegel — lança uma maldição (uma piada de redes sociais) a Asher. A maldição envolve frango (isso mesmo). E, a partir daí, Asher vive obcecado com a ausência ea presença de frango na sua vida. Aviso: é tão ridículo como soa, mas a história funciona. É com isto que Whitney tem de lidar? Bom, Asher serve-a na perfeição. Whitney vive na ilusão de que conseguirá ser independente dos pais, ausente da ideia de que o que tem foi-lhe dado por eles e de que quando há um problema tem de recorrer a eles. O dinheiro, portanto, é sempre solução, sobretudo para fazer valer a ideia de comunidade que estão a construir, para passar a mensagem de que é possível, real e sustentável.
The Curse é uma crítica à certeza do privilégio, ao dogma de saber o que está bem e como deve ser feito. Mas é também um exercício de aparências, de como há algo sempre de errado a acontecer: seja social, moral, ou até urbanístico ou estético. Whitney assimila tudo isto porque é o centro de The Curse. É a miúda rica que quer ser diferente dos pais; é a miúda rica que quer fazer algo de exótico; é a miúda rica que não é aquilo que quis ser — uma artista — e tenta apropriar-se de tudo o que pode e consegue para fazer valer o seu “bom gosto”; é a miúda rica que quer ser influencer da forma mais dispendiosa e difícil possível.
Emma Stone assume-a de forma brilhante. Ainda não a vimos em Pobres Criaturas (estreia-se entre nós a 25 de janeiro), mas parece que as coisas estão a correr bem nos últimos meses à atriz. Quem interpreta gosta de dizer que adora desafios, mas poucos no patamar de Stone aceitariam um papel como este, sobretudo numa série tão disponível para a comédia negra e para olhar para a sociedade contemporânea com tão poucos escrúpulos, mesmo que eles habitem nas subtilezas. Menos ácidos que outros trabalhos de Nathan Fielder, The Curse serve o propósito de trabalhar as suas ideias na ficção em conjunto com Safdie, sem artifícios do género “será verdade ou não?” ou “aquelas pessoas são reais ou atores?”. Há uma agonia permanente, o trio central incorpora um estado geral do mundo, a ideia de que o dinheiro, mais do que resolver os problemas, sabe colocar os outros onde eles têm de estar. E os outros, enquanto espectadores, também somos nós.