O Governo francês surpreendeu quando abriu as hostilidades e anunciou que, a partir do início de 2024, os automóveis eléctricos fabricados em países que produzam energia eléctrica de forma mais poluente – essencialmente à custa da queima de carvão e de derivados de petróleo – deixariam de ter acesso aos incentivos atribuídos aos modelos sem emissões poluentes, vulgo os eléctricos, sejam eles alimentados pela energia armazenada na bateria ou produzida a bordo através de células de combustível a hidrogénio. Esta nova regulamentação foi desde logo apontada como uma tentativa de prejudicar os eléctricos chineses, retirando-lhes competitividade, mas a realidade é bem diferente.

Faz todo o sentido promover a aquisição de veículos não poluentes, que não emitam partículas e NOx – ambos cancerígenos – nos locais onde circulam, maioritariamente nas grandes cidades. Afirma o FT que, para o Governo francês, não é aceitável que ao promover estes veículos eléctricos, atribuindo-lhe incentivos à compra, não se tenha em linha de conta as emissões poluentes e de CO2 durante o período de produção, das matérias-primas e ao próprio veículo, o que depende de como a energia é gerada no país onde se localiza a fábrica. Daí que França tenha decidido fazer depender as ajudas estatais à compra de veículos eléctricos do facto de os modelos em causa terem um baixo nível de emissões durante a fabricação. Ora, na China, a geração de electricidade faz-se maioritariamente à custa de carvão (era de 62% em 2021), pelo que não é fácil aceitar que os eléctricos produzidos na China sejam pouco poluentes se considerarmos o ciclo total, da produção à utilização.

Eléctricos chineses sofrem, mas também os Tesla

A prova de que o Governo de Macron não visou exclusivamente os fabricantes de eléctricos chineses, mas sim a forma como alguns países (como por exemplo a China) produzem a sua energia e os seus veículos, encontra-se na lista de fabricantes cujos modelos são penalizados, ao ficarem de fora do conjunto elegível aos incentivos, que em França oscilam entre 5000€ e 7000€. É certo que os carros chineses a bateria ficam excluídos pelos novos requisitos ao apoio governamental francês, mas também os veículos de marcas europeias e norte-americanas vão sofrer, como os Tesla Model 3 mais acessíveis, exportados a partir da China, enquanto o Model Y fabricado na Alemanha não é abrangido, ele que é o EV mais vendido em França. Mas há mais vítimas entre as marcas não chinesas, por também elas produzirem neste país asiático. É o caso do pequeno Dacia Spring, dos Polestar, do Smart e de modelos alemães como o BMW iX3 e os novos Mini SE (eléctricos).

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O conjunto de candidatos a serem colocados de “castigo” pelo sistema fiscal francês vai continuar a aumentar, uma vez que há cada vez mais marcas ocidentais a pretender fabricar eléctricos na China, para reduzir os custos de produção, como é o caso da Cupra com o Tavascan, cujas primeiras unidades estão programadas para sair da linha de montagem de Anhui, numa das linhas de produção que o Grupo VW possui em parceria com construtores locais, de onde será exportado para a Europa. Curiosamente, alguns construtores chineses – como a MG, do grupo estatal SAIC – já começaram a oferecer 4000€ de desconto, para compensar os incentivos retirados pelo Governo gaulês.

Se a França ataca, a Alemanha defende

Por oposição à França, que decidiu enfrentar os construtores que produzem em países mais poluentes, a Alemanha não só não adoptou uma estratégia similar, como viu os fabricantes germânicos pressionarem o Governo para exigir que a União Europeia – de que é o maior contribuidor – não aplicasse às marcas chinesas o mesmo tipo de exigências que a China impõe às marcas europeias que pretendem comercializar os seus veículos naquele país asiático.

A pressão exercida pelos construtores alemães contra o incremento dos impostos sobre os carros chineses deve-se ao peso que a China tem nos seus resultados, representando em média 1/3 do volume de transacções, reforçada pela pronta ameaça, por parte dos dirigentes chineses, de retaliar contra as marcas alemãs caso a UE aumente as taxas sobre as marcas asiáticas, ainda que apenas equiparando-as às aplicadas pelos chineses. A Audi, BMW, Mercedes e Volkswagen detinham em 2022 apenas 4,8% do segmento dos veículos eléctricos chinês, segundo a Reuters, ainda assim um incremento face aos 2,2% de 2020. Por comparação, a Tesla possui 12% deste mesmo segmento.

Por uma questão de justiça, a Europa poderia bater-se pela equiparação dos impostos para veículos à entrada dos mercados da União, face aos aplicados pela China, país onde as importações de veículos pagam entre 25% e 47%, com o modelo a poder suportar depois 17% sobre o valor agregado. Face a este elevado nível de impostos chineses, à entrada na Europa os carros importados pagam apenas 10%, enquanto nos EUA as taxas são de 27,5%.

Entretanto, a UE continua a investigar as queixas de subsídios ilegais do Estado chinês à sua indústria automóvel, de acordo com o Politico, o que levará à aplicação de impostos extra caso se venha a confirmar. De recordar que a Bloomberg (BNEF) reportou que, entre 2016 e 2022, o Estado chinês distribuiu pelos construtores locais cerca de 26 mil milhões de dólares de subsídios, com a China a ter exportado 476.000 veículos para a Europa na primeira metade de 2023, o que representa 38% do total de exportações, quando o Velho Continente não representava mais de 2% em 2019 .