Depois da visível emoção quando parou o carro e baixou o vidro junto aos cerca de 50 adeptos que marcavam presença à porta do centro de estágio de Trigoria, José Mourinho ainda demorou algumas horas a reagir em termos públicos ao despedimento da Roma. Quando o fez, através de um vídeo publicado nas redes sociais onde recordava não só as vitórias conseguidas mas também a empatia com os giallorossi, escreveu apenas dez palavras no último adeus: “Suor, sangue, lágrimas, alegria, tristeza, amor, irmãos, história, coração, eternidade”. Um resumo ainda mais resumido do que é normal de dois anos e meio nos romanos que não conseguiram fugir à síndrome da terceira época que tem marcado os últimos projetos do técnico português. No entanto, e 24 horas depois, percebe-se que houve muito mais do que isso nos bastidores da sua saída.

“Agradecemos ao José mas é necessária uma mudança imediata”: Roma despede Mourinho após nova derrota na Serie A

Primeiro ponto: Mourinho sabia que estava a prazo na Roma. Após a derrota na final da Liga Europa com o Sevilha nas grandes penalidades, que terminou com o técnico português a disparar em várias direções (em especial a arbitragem, o que levou a que entrasse na zona da garagem para voltar a criticar o trabalho), os proprietários da Roma, os norte-americanos Dan e Ryan Friedkin, colocaram em causa a continuidade do português pela forma como também visou as condições abaixo do esperado para chegar onde tinha chegado. Ficou. Mais: o facto de assumir que tinha recebido duas propostas megalómanas da Arábia Saudita mas que estava comprometido com o projeto dos romanos “esvaziou” qualquer margem de manobra para a saída.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No arranque da nova temporada, a terceira e com o objetivo claro de chegar aos quatro primeiros lugares da Serie A para regressar à Liga dos Campeões (havendo sempre a outra via de conquistar a Liga Europa), os maus resultados e exibições que nem a goleada ao Empoli por 7-0 disfarçou voltou a colocar o treinador em xeque. Aí, e apenas nessa fase, Tiago Pinto, diretor geral dos giallorossi, defendeu a continuidade de José Mourinho não só pela crença de que o rendimento iria melhorar mas também porque não haveria outra alternativa melhor do que o português. Os proprietários aceitaram esses argumentos mas destacaram a necessidade de uma redenção rápida como viria a acontecer depois da goleada sofrida com o Génova (4-1), com cinco vitórias consecutivas entre Campeonato e Liga Europa. Tudo parecia regressar ao “normal”.

A Roma ainda perdeu no Giuseppe Meazza com o Inter mas o caminho de aproximação ao quarto lugar da Serie A estava a ser feito. Nessa fase, mais do que nunca, Mourinho falou do futuro. Em duas entrevistas em que assumiu que a Arábia Saudita era uma inevitabilidade mas mais para a frente na carreira, o treinador foi colocando sempre o principal objetivo na renovação com a Roma, manifestando a disponibilidade para ficar no projeto e abrindo a porta a conversações nesse sentido. Conversações que, de resto, nunca chegaram a ser materializadas pelos proprietários, mesmo havendo essa ideia transversal a todos que o sucesso desportivo dos romanos e um possível regresso à Champions tornava quase uma “obrigatoriedade” esse contacto para prolongar o vínculo. Uma coisa é certa: nesse aspeto a palavra de Tiago Pinto já não teria tanta força, tendo em conta a ideia de sair no final de janeiro para depois assumir outro projeto desportivo.

A parte final da relação chegou na recente série de maus resultados da Roma, com apenas uma vitória nos últimos seis encontros que levaram à descida ao nono lugar da Serie A e à eliminação nos quartos da Taça de Itália frente ao rival Lazio. Mesmo cientes das dificuldades que esse período poderia comportar (Fiorentina, Bolonha, Nápoles, Juventus, Lazio e AC Milan), os norte-americanos consideraram que o rendimento geral da equipa, a par das constantes críticas de José Mourinho a fatores externos para justificar maus resultados e das expulsões do técnico no banco, era insuficiente e precisava de uma “viragem imediata”, que aconteceu a partir do momento em que Daniele De Rossi aceitou a proposta de poder assumir o comando da equipa apesar da experiência menos conseguida na SPAL onde ganhou apenas três dos 17 jogos feitos.

Regresso ao passado, uma “homenagem”, Médio Oriente e as seleções: as quatro hipóteses para o futuro de José Mourinho

Assim, e depois do desaire em San Siro diante do AC Milan que não contou com José Mourinho no banco por castigo, Dan Friedkin viajou dos EUA para Itália para operar a mudança. No gabinete do filho, Ryan, o norte-americano enviou uma mensagem escrita ao técnico português para se apresentar para uma reunião logo na manhã de terça-feira e foi aí que os proprietários anunciaram a intenção de despedimento. Mourinho não reagiu da melhor forma. Segundo o Corriere dello Sport, o treinador apontou o dedo aos proprietários por não terem cumprido o prometido a nível de reforço do plantel e proteção interna entre alguns palavrões em inglês, ao passo que Dan Friedkin apontava para os resultados abaixo do esperado com os jogadores que tinha à disposição e que colocavam a presença na próxima Liga dos Campeões em risco.

Depois dessa reunião que terminou num clima tenso, o proprietário da Roma foi ao balneário falar com os jogadores, equipa técnica e restante staff para dar conta daquilo que a essa hora se tornara público através de um comunicado que anunciava a rescisão de contrato com o técnico, algo que apanhou de surpresa todos os presentes. A essa hora, Mourinho aproveitava para começar a fazer as despedidas das pessoas com quem tinha trabalhado em Trigoria durante dois anos e meio, recebendo depois um “banho” de carinho e respeito por parte dos cerca de 50 adeptos presentes à porta do centro de treinos que cantaram o nome do treinador e criticavam os proprietários dos romanos – algo que se tornou depois transversal ao longo do dia entre adeptos dos mais variados quadrantes da sociedade. Também os jogadores foram fazendo a despedida do técnico através das redes sociais, com Dybala a ser o primeiro a deixar uma mensagem de agradecimento.

Uma viagem relâmpago de Friedkin, panfletos contra os donos e a emoção do adjunto no adeus: os bastidores do último dia de Mourinho na Roma

Olhando apenas para os números, José Mourinho teve a passagem menos conseguida a nível de resultados, com 68 vitórias, 30 empates e 40 derrotas nos 138 encontros que dirigiu na Roma (uma média que só teve paralelo na carreira com a União de Leiria, onde ainda assim estava entre os quatro primeiros lugares antes de rumar ao FC Porto). No entanto, entre uma final europeia ganha na Liga Conferência e outra perdida na Liga Europa, conseguiu “resgatar” aquilo que era o orgulho romanista, com o Olímpico a ter quase sempre casa cheia a sonhar por patamares há muito arredados do clube. Também por isso, a chamada do antigo capitão De Rossi acabou por serenar ânimos, sendo certo que poucos acreditam na possibilidade de ser uma solução a médio prazo. Aliás, já se começa a falar nos nomes de Antonio Conte e Thiago Motta.

Também no plano interno a forma como tudo aconteceu pode provocar mais ondas de choque. Com a saída do técnico e também de Tiago Pinto, diretor geral que cessa funções no final do mês de janeiro, também a CEO da Roma, a grega Lina Soulokou, pode deixar o projeto. Neste caso, a decisão seria apenas da própria mas em ligação com o que se passou esta terça-feira, por sentir-se desautorizada por não ter participado em qualquer conversa, encontro e reunião sobre o futuro do treinador português. Após passagem pelos gregos do Olimpiacos, Soulokou chegou à Roma em abril, tendo ainda posição de destaque na Associação Europeia de Clubes. Agora, de acordo com a imprensa italiana, pondera deixar o cargo na sequência deste processo.

Da “falta de respeito” ao “clube que parece uma agência de correios”: as reações à saída de Mourinho da Roma

Do lado de Mourinho, não houve mais nenhum comentário depois da saída, sendo ainda uma incógnita o que irá fazer no futuro. Ainda assim, e até mesmo junto de antigos responsáveis de outros clubes, é “visto” mais como vítima do que culpado. “Lamento muito o despedimento de José Mourinho porque conheço o seu profissionalismo, a sua seriedade e sei o quanto ele se importa. No fundo, deve ter sido uma grande tristeza para ele. É tudo uma combinação que fez com que não funcionasse: o balanço da equipa, alguns jogadores terem tido um desempenho inferior ao que foi pensado, tiveram muitas lesões…”, referiu Massimo Moratti, ex-presidente do Inter. “Estas empresas norte-americanas trabalham sem respeitar as pessoas com quem colaboram. Vimos isso no AC Milan com [Paolo] Maldini e agora em Trigoria, com José Mourinho. Só pensam no negócio. Eu, no entanto, julgo que o respeito também é necessário, talvez com um acordo fechado antes e não com um comunicado e uma chamada telefónica”, comentara antes o ex-técnico Fabio Capello.