Se Paris é a cidade das luzes, Lisboa é a cidade das pastelarias tristes. Num destes dias melancólicos de janeiro convidaram-me para almoçar na Mexicana, na avenida Guerra Junqueiro, não muito longe do Técnico. Sabiam do meu interesse por locais históricos da cidade, pelo meu amor ao design e a minha paixão por cerâmica e húngaros (le petit gâteau, não os cidadãos da Hungria) e garantiram-me que haveria de adorar esta autêntica obra do modernismo português. Très bien disse e lá fui até à “zona do Técnico”.

(Um pequeno à parte: demorei alguns anos a compreender que quando um lisboeta me diz que determinado local é “ali na zona do Técnico” não é porque o sítio seja de facto perto do Técnico, mas sim porque não há muitas referências na cidade que se possam dar a alguém com a garantia de que saiba o quê. A capital portuguesa é uma grande aldeia com pouco exotismo e zonas demasiado recentes para que possamos indicar com segurança um monumento ou atração com séculos).

A Mexicana original data dos anos 40, mas esta versão modernista e conhecida é dos anos 60 do século passado. Chama-se assim porque ficava junto da avenida do México e da projetada Praça do México, que acabou por ficar a Praça de Londres.

Só tinha ido uma vez à Mexicana, num final de tarde há muitos anos, numa última homenagem que decorreu na igreja defronte e ficara com a ideia que a pastelaria, que é oficialmente monumento de interesse público, funcionava com uma certa vibração do passado que voltei a sentir o que não nos perturbou (je suis conservateur, pas réactionnaire) porque o janeiro é um mês que reclama calma e aconchego.

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Numa das colunas à entrada, um papel afixado mostrava o horário de verão. Senti aquela informação inesperada como um mau presságio, ninguém notou que estávamos no inverno e que antes estivéramos no outono, que o verão passou há tanto tempo? Não há ali um responsável que retire aquele papel colado com fita cola da coluna e, já agora, mande vir alguém para a pintar? Pensava nisto quando percebemos que havia uma multidão à espera de vez e mudámos os planos, decidindo que o melhor era esquecer o chá com húngaros e optar por almoçar.

Fomos em frente, furando pelas muitas pessoas que se acotovelavam perto do balcão, para cafés e talvez algo da pâtisserie, atravessado as mesas de cafetaria, diretos à “sala de chá”, mal iluminada e (percebemos depressa) descuidada. Vimos logo o “Sol de México,” a magnífica obra de cerâmica em relevo de Querubim Lapa. Ao seu lado, um “passarinhário”, a montra cheia de periquitos vivos que escoltam aquele painel que nos deixou uma impressão muito forte e que toda a gente devia conhecer.

Numa mesa, escondidas na falta de luz, algumas pessoas comiam e conversavam como se fizessem parte do cenário.

A minha amiga perguntou-me se era mesmo ali que íamos almoçar, comentando que se sentia num filme de série B onde acontecem coisas perigosas. Era verdade, o ambiente era lúgubre e um pouco troublant, dava a ideia que entráramos num sítio onde era proibido estar e que acabaríamos por pagar o preço. E pagámos.

A empregada (a que a minha amiga chamou de “Twin Peaks”) disse-nos que nos sentássemos onde quiséssemos. Conseguimos uma pequena mesa simpática encostada à parede oposta ao sol de Querubim Lapa. Iríamos almoçar com uma vista incroyable, era uma questão de esquecer as demasiadas moscas mortas esquecidas dentro dos candeeiros por cima de nós.

Ao lado, falava-se afinal de política, em especial de um certo partido, até que a empregada “Twin Peaks” (que foi très sympa) trouxe o menu, que se revelou longo e cheio de ofertas confusas, uma mistura de páginas metidas em guardas de plástico, reunidas numas capas oferecidas pela Adega Maior. Logótipo da Mexicana? Imagem orgulhosa alusiva ao painel de Querubim Lapa? Um pouco de historie daquela zona? Maracas? Nada, rien de rien, notei apenas uns sombreros pequenos esquecidos em cima de um refrigerador de vinhos, lá deixados talvez por graça, talvez por acaso, mas no resto mais nenhum clin d’œil.

Na lista, havia vários bifes, vários pratos de bacalhau, dourada, robalo, snacks de todo o tipo, acabámos por decidir depressa e pedimos um bife à Mexicana, por causa da promessa da batata frita às rodelas e um prato do dia, “carapauzinhos” com arroz de legumes. Bebemos água calmamente, absorvendo a história, a atmosfera da Mexicana, mirando as aves nos troncos secos. O que podia correr mal?

Ninguém vai a um sítio histórico, daqueles com pedigree, para comer muito bem. Isso seria estúpido. Há qualquer coisa na lei das compensações do universo que impede que assim seja. Não há Querubim Lapa vintage e comida Michelin sem que tenha de se reservar com dois anos de antecedência. Mas é possível esperar comer bem, satisfatoriamente. Veja-se, por exemplo, o centro de arte moderna da Gulbenkian.

Não é o que acontece na Mexicana, como bem avisou o papel com o horário de verão esquecido à entrada e os dois pratos sem a menor preocupação de distinção, chegaram sem um raminho de salsa, uma metade de uma laranja, um quarto de limão, nem sequer uma noisette de manteiga, ou numa loiça com decoração. Podíamos estar numa das pastelarias clássicas de Lisboa ou no refeitório de uma fábrica de ar condicionado há quarenta anos, teria sido igual.

E sobre a comida, que dizer? De positivo, quase nada. Salvo as batatas fritas, pura e simplesmente a confeção dos pratos não é boa. Aliás, naquele dia, foi péssima, horrível mesmo. Infelizmente não se come património e no fim da refeição voltei a constatar que em Portugal é onde se pode comer melhor mas também é onde muitas vezes se come pior. O bife vinha afogado em gordura e o plat du jour chegou numa inqualificável bandeja a deitar por fora, condizente com o arroz demasiado cozido e os peixes frigidos num óleo com demasiadas frituras em cima a pedir a reforma. Ambos imploraram por um alka-seltzer meia hora depois.

Naquela dia tão português e arrastado, indiferente ao mundo e à concorrência, desejei que a ultrapassada Mexicana tivesse um toldo preto e um nome em inglês e me tivessem servido qualquer coisa com chips de batata doce. À saída, na esplanada havia restos de caixas de cartão desdobradas por cima do chão, com as mesas e cadeiras por cima, um improviso dégoûtant contra a chuva e a lama. Devíamos ter ficado pelos húngaros, quelle tristesse.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de amêijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.