Um soneto escrito pelo próprio Luís Vaz de Camões pode ser a resposta para o dia do nascimento do poeta português. E se os investigadores da Universidade de Coimbra estiverem corretos foi há exatamente 500 anos: 23 e janeiro de 1524. “O dia em que eu nasci, morra e pereça/ Não o queira jamais o tempo dar, / não torne mais ao mundo e, se tornar, / eclipse nesse passo o sol padeça”, lê-se no poema que os investigadores consideram apontar a data de nascimento de Camões, num trabalho que junta astronomia e leitura de poesia.

Como explicou Rita Marnoto, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, à Rádio Observador, a palavra a ter em atenção é “eclipse”. O soneto continua com a descrição desse momento e termina com: “Ó gente temerosa, não te espantes, / Que este dia deitou ao mundo a vida / Mais desaventurada que se viu!”.

Uma pista sobre o nascimento de Camões: “Um soneto em que fala de um eclipse”

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[Ouça aqui a entrevista a Rita Marnoto na íntegra]

E como foi possível chegar a uma conclusão tão concreta? “Precisaríamos de ter uma documentação de arquivo que o pudesse dizer. São muito escassas as informações certificadas por documentos de arquivo que temos acerca de Camões — o que acontece para muitos outros escritores do seu tempo”, explicou a também comissária para os 500 anos de Camões. Mas não foram apenas estes registos: neste caso, os astros ajudaram também eles a reunir pistas importantes para a investigação. “Neste caso, trata-se de elaborar uma leitura interdisciplinar de um soneto escrito por Camões em que se fala de um eclipse. Esta leitura será repartida por cientistas que, estudando as tábuas dos astros, identificaram o dia em que ocorreu o eclipse do sol. E consideram a hipótese de a partir desse soneto, que fala do dia em que Camões nasceu, identificar, então, esse dia no calendário. Na medida em que foi nesse mesmo dia que ocorreu, em 1524, um eclipse de sol.”

Os cientistas leram o soneto, estudaram os astros e apontam o dia em que ocorreu o eclipse solar. “No entanto”, sublinha a professora Rita Marnoto, “neste diálogo entre Ciência e Literatura, há pistas e leituras a desenvolver. O ser humano tem uma tendência fortíssima para atribuir aos fenómenos da Ciência um outro significado. É quase uma necessidade antropológica de compreender o mundo nos seus aspetos mais enigmáticos, às vezes mais curiosos, mais encorajadores, às vezes mais terríveis. E o fenómeno do eclipse anda, na esmagadora maioria dos casos, associado a atos funestos, infelizes”.

O dia em que eu nasci, morra e pereça

Não o queira jamais o tempo dar,

Não torne mais ao mundo e, se tornar,

eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,

Mostre o mundo sinais de se acabar,

Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,

A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,

As lágrimas no rosto, a cor perdida,

Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao mundo a vida

Mais desaventurada que se viu!

(versão do soneto de acordo com a leitura de Rita Marnoto)

O que Camões faz neste soneto, “em que deplora a sua sorte”, é dizer que “o dia em que ele nasceu foi tão funesto que isso foi assinalado por um eclipse”, explica a professora catedrática de Coimbra, não deixando de referir que esta é apenas uma interpretação das palavras de Camões: “Isto é um facto interpretativo. Camões está a escrever um soneto e, portanto, o seu mundo é o da ficção. Este eclipse é um símbolo. O ser humano tem, de facto, tendência para atribuir os fenómenos estudados pela Ciência um outro significado.  Camões faz coincidir o dia em que nasceu com uma série de fenómenos que são sinais de desgraça para simbolizar a infelicidade da sua vida.”

A investigadora não tem dúvidas:  “​São estas as pistas que Camões nos legou para que as interpretemos, como leitores interessados e atentos”. Depois, para passar “para o plano histórico, seriam necessárias de fontes históricas”. “E os historiadores trabalham com fontes de arquivo, com registos, documentos escritos nesta época. Esta é uma hipótese interpretativa. É o aproveitamento da riqueza através de Literatura que escreve. Estamos a trabalhar com interpretações e exprimir-se-ão, acerca deste assunto, dois grandes cientistas [Carlota Simões, Professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e diretora da Imprensa da Universidade de Coimbra; e João Fernandes, diretor do Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra]. Uma certeza vem de documentos de arquivo, mas não é só de certezas que se faz a História e que se fazem as leituras de Camões. A interpretação dos seus textos é, também, fundamental. É por este modo que Camões nos diz alguma coisa. A nós, leitores de hoje”, explica ainda.

E será possível dizer, agora, que esta é a data mais precisa do dia em que nasceu o poeta? A professora Rita Marnoto esclarece: “Se assim quisermos entender… Se assim quisermos interpretar a ficção literária de Luís de Camões, com certeza.”