Slow J, ouvimos, representa toda uma geração. “If you made it, we made it”. As palavras são de Gson, as derradeiras de um concerto que teve duas horas, uma família inteira em palco, um MEO Arena esgotado. Gson disse-o sabendo que estava a testemunhar um momento inédito: foi preciso chegar a 2024, mais de quatro décadas de hip hop tuga, para que um rapper português a solo esgotasse esta sala, não uma, mas duas vezes. Olhando pelo retrovisor, vemos lá longe as filas que Slow J acumulou em 2017, à porta de um abarrotado Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, aquando do lançamento do seu primeiro álbum, The Art of Slowing Down. A profecia deste dia já estava a ser escrita há muito tempo.
Aconteça o que acontecer, este puto nascido no Sado, que se propôs a tomar o mundo de assalto e a inventar música nova, já fez história. “Esta é uma noite muito especial” disse Slow J depois de nos servir três entradas de bandeja, quais boas vindas do chef num longo menu de degustação: Tata e Where U @, de Afro Fado, e FAM, do álbum You Are Forgiven (2019) com Papillon em palco, abriram as hostes e as goelas da plateia, que logo ali fez saber a João Batista Coelho (assim se chama o dito lento) que não o deixaria a cantar sozinho em nenhum momento.
Enlevado por tão apoteótica receção, Slow J lançou-se para aquela que parecia ser a mensagem política da noite. “Este fim de semana é de eleições, é uma cena bué importante”. Ficámos em bicos de pés, ouvidos arregalados para apanhar as palavras que se seguiriam, achando que João iria assinar um manifesto, o tal sobre o país do futuro que ele quer ensinar ao seu filho, onde cor de pele não é dístico. Mas em vez do manifesto, veio uma mensagem desenxabida: “Por mais que votem ou não votem, nós é que vamos fazer a diferença no final do dia. Começámos com um portátil no quarto e agora estamos aqui. Acreditem nos vossos sonhos”. Para fazer a diferença, João, há que sair do quarto e votar, ou os sonhos são levados pelo Sado, o tal que nunca se importa.
Por outro lado, quem mergulha nas raízes e as mistura, chamando todos a sua casa, como Slow J o faz, está obviamente a assinar um manifesto e a criar um hino à medida de todos os portugueses que dispensam intitular-se de bem. O seu último álbum, como partilhou em entrevista ao Observador, em novembro, é o reflexo de uma sociedade filha de várias influências. É o fado sendo Amália, sendo Eusébio, sendo filho de Pai e de Tata Wanange, sendo o que ele quiser e, sendo assim, fazendo-se voto útil aqui e agora.
Passada a mensagem, Slow J prosseguiu em busca da terra prometida. A seu lado tinha Rui Poço, “o primeiro guitarra portuguesa de boné”, Hugo Lobo nas teclas, João Caetano vigoroso nas percussões, Diogo Seis no baixo e Djodje Almeida na guitarra, sacando solos à moda de Prince em faixas como Às Vezes. Prosseguiu com Fogo, depois com CorDaPele, combinando raça e tom, e a fechar o bloco, Ultimamente, que levou o músico a percorrer o corredor comprido que furava o mar de gente, qual pontão saído do palco em forma de W. “Esta é uma canção muito especial”, disse, chamando os gémeos GOIAS até si e pondo o carapuço para a cantar, como que protegendo a cabeça e os cornos das dores de ter crescido tão rápido. Bater recordes, como o conseguido com Afro Fado (o álbum português mais ouvido de sempre no Spotify no primeiro dia após o lançamento), nem sempre é emocionalmente fácil de gerir.
Falando em recordes, Imagina trouxe Ivandro a jogo e um delírio coletivo à altura daquele que é um dos maiores fenómenos nacionais, com quase um milhão de ouvintes mensais no Spotify. O público parecia estar feeling good e Slow J, embalado, pedia para que naquela noite sentíssemos tudo “até à última”. Porém, quando veio a Fome, canção de 2017 a lembrar uns Da Weasel cheios de hip hop e de punk nas ventas, metade dos presentes ficou sem saber o que fazer. “Há públicos que gostam, outros que não gostam. Esta tocamos para nós”, desdramatizou o músico.
Já a que viria a seguir, tocou-a para nós, para si e para os que ficaram em casa e tiveram direito a vídeo chamada dos seus entes queridos da plateia. Cristalina foi um dos momentos altos da noite, sacando as lanternas de praticamente todos os telemóveis que havia em sala, de tal modo que a MEO Arena clareou como se o céu límpido da Patagónia tivesse baixado sobre as nossas cabeças. Naquela constelação de pontos cintilantes, Slow J era a estrela maior. A seguir entrou Terra, alguém proclamando “a minha terra é linda” e não mais “Jota” conseguiu conter a emoção. Olhos brilhando, fixou imóvel a imensidão, fixando, quiçá, a sua terra, o seu lugar, o sítio para onde ele quer voltar. Da boca escapou-se-lhe um trémulo “muito obrigado”. Afinal, são muitos meses a preparar um concerto destes e quando chega a hora agá, o “cardio”, por muito que esteja no ponto, vacila.
Foram também muitos os meses de espera do público para ver Slow J novamente em palco e, talvez pela emoção acumulada, houve quem se tivesse sentido mal. O músico, atento, pediu “tomem conta uns dos outros”. Interrompeu o concerto uma vez, interrompeu-o uma segunda, em Lágrimas, para “acudir” os aflitos. Quem se manteve de boa saúde, pediu-lhe para repetir a canção de luto, que ficara inacabada. Slow J lá tentou, mas ao vivo não é como no disco, em que se volta atrás a qualquer momento e tudo sai imaculadamente perfeito. “Agora perdi-me”, não valia a pena forçar, venha daí Sereia e um “presente” chamado Richie Campbell. “Nunca estaríamos aqui hoje se o Richie não nos tivesse mostrado que era possível para um artista português esgotar esta merda”. Water valeu um longo abraço entre irmãos.
Até ao lavar dos cestos ainda teríamos Origami e 3,14, partilhadas com Gson, e a pujante Vida Boa a contrastar com a Serenata de um Slow J sozinho em palco, de guitarra na mão. Teríamos também Teresa Salgueiro, em Nascidos & Criados, envolta em fumo, enfrentando o mar com a sua voz inconfundível, como inconfundível foi a voz de Sara Tavares entrando em Também Sonhar. Ainda a procurámos no fumo deixado por Teresa, esperando-a ver dobrar uma esquina daquele W do palco, não nos resignando com quem já partiu para renascer noutro lugar. Para a “rainha da música portuguesa e da música PALOP” soou o mais alto e demorado aplauso da noite. Se Slow J está a representar toda uma geração, como disse Gson, Sara Tavares representou toda uma nação Afro Fado.
Por esta altura já os relógios apontavam as onze horas e meia e, embora o público teimasse em dizer que não estava cansado, respondendo aos reptos de Slow J, percebeu-se que o fôlego – o nosso e o dele – não era o mesmo do início. Menos vinte minutos e um par de temas não teriam feito mal nenhum a um concerto, que, em certos momentos, pareceu esquecer a narrativa, perdendo-se na sucessão de sucessos. Talvez por isso tenhamos ficado com a sensação de termos vivido um momento histórico, mas não um momento épico. Fica a foto para a posterioridade, com todos os convidados em palco, “para ninguém dizer que não é verdade”. Esta sexta-feira Slow J tem novo encontro marcado com as estrelas.