Estamos no verão de 1957, em Hiroshima, onde um casal se encontra maioritariamente em espaços interiores, recolhidos numa intimidade no precipício de um fim sempre iminente, como o tempo que passam juntos, incerto. Em Hiroshima, Meu Amor, de Marguerite Duras, recém-(re)editado pela Quetzal, com tradução de Maria José Palla e M.Villaverde Cabral, a autora declara o que o filme homónimo, de Alain Resnais, para o qual escreve este diálogo como argumento, deve e não deve parecer:
É preciso que este filme franco-japonês nunca apareça como franco-japonês, mas sim como anti-franco-japonês. Aí ganharemos a aposta.” (182)
É neste sentido, igualmente, que no homem japonês o espectador não deve senão reconhecer um homem belo, independentemente da sua fisionomia nipónica, e na mulher francesa, uma mulher “mais sedutora do que bela” (187), sem atentar na sua tipologia ocidental. A intenção é mais de desterritorializar do que de universalizar este encontro, gesto que prontamente volveria um dos múltiplos filamentos que sustentam a palavra e a dinâmica da lei. O amor não pertence a parte alguma, travessa de nenhures insondável que é, mas acontece em lugares que permitem, não uma nomeação, coincidindo sim com o único nome possível: “Hi-ro-shi-ma. É o teu nome. (127)” diz a mulher ao homem, já no termo do diálogo.
O que acontece é fundamentalmente isto: um casal — que permanece anónimo, os nomes não são desvendados — encontra-se amorosamente em Hiroshima, no período escasso de algumas horas, nunca precisadas com exatidão. A referida neutralidade cultural, imageticamente construída e literariamente antecipada, que uma e outra figura apresentam constitui o torniquete responsável pela tensão de contraste estabelecida relativamente ao aparato ético-espectacular e, portanto, devedor desse acontecimento absoluto que foi a explosão da bomba atómica em 1945; aparato rebarbativo de que serve de exemplo o filme sobre a paz (porque em Hiroshima não podem senão rodar-se filmes sobre a paz) no qual a mulher participa, razão pela qual se encontra naquela cidade.
Sendo embora uma relação de contraste, é, todavia, a pontualidade daquele encontro amoroso que pode devolver o absoluto — anulando a distinção entre o bem e o mal, superando a bitola dialética, assim revelando a raiz da loucura como aceitação do novo e do absolutamente outro —, e não um qualquer equivalente emblemático dessa catástrofe com repercussões históricas mundiais. Sai-se da História para entrar, como paixão e fatalidade, na memória. Como o fim do encontro entre os dois, o curto-circuito do esquecimento é a miragem justamente atuante sobre as paisagens mentais — e os contactos físicos, o erotismo posto momentaneamente em xeque pelo amor — que se vão formando.
Título: “Hiroshima, Meu Amor”
Autora: Marguerite Duras
Tradução: Maria José Palla e M.Villaverde Cabral
Editora: Quetzal
Páginas: 188
Neste sentido, homem e mulher dispõem-se um para o outro, um sobre o outro, um contra o outro, a ler o seu passado, separados de um qualquer registo eloquente, preventivo e cerimonioso para com o futuro. Ler a partir de um esquecimento, na leitura reconhecendo a falta que justamente acomoda uma forma de legibilidade: “Como tu, também eu sou dotada de memória. Conheço o esquecimento.” (30). Essencialmente este casal nada tem que ver com a catástrofe de 1945. Ele encontra-se, sim, naturalmente ligado às histórias pessoais que cada um transporta, histórias mais ou menos encantadoras, mais ou menos loucas, tratando-se este encontro de uma forma de viver à margem da récita delegada e reconstituinte do memorial, essa intenção exibida como forma perfeita, em tudo contrária ao que o amor só pode ser: bastardo, errático, incompleto e, no limite, mudo, afásico, exposição velada de um segredo que é. O toque presente, a carícia que Emmanuel Levinas pensou como gesto cego, dissipada como “um sonho impessoal, sem vontade e mesmo sem resistência”, confunde-se com a “recordação da recordação” da mulher, a bem dizer, na impossibilidade de não pensar senão por imagens, ecrãs mnésicos até à mais delirante perda de referência.
O encontro, do qual nada se pode esperar, descrença essa que o fundamenta numa sinceridade ímpar a duas partes, é, pois, um encontro no segredo como forma de absoluto. E o absoluto como o resíduo desse perdão fundamental da literatura de que nos fala Jacques Derrida (autor de Adieu à Emmanuel Levinas, de quem foi discípulo):
Não há literatura que, desde a sua primeira palavra, não peça perdão. No começo, houve o perdão. Por nada. Por nada querer dizer”
A história de amor do casal deve a todo o custo sobrepor-se à narrativa histórica do desastre nuclear — dizendo nada, por nada dizer a esse respeito —, desmaterializando a função identitária do registo fixo da nacionalidade, e da História como dívida a prestar ao passado, por interposto de um futuro equacionado como montagem sumptuosa de estilhaços. É, pelo contrário, a operação sempre infinda, e a-histórica, temperamental e não temporal, da aliança do segredo inscrita no desejo e que é aqui sublevada.
E é precisamente essa dissemelhança absoluta entre o amor e a catástrofe como facto histórico (como acontecimento, o amor e a catástrofe assemelham-se pela vida que continua depois do fim, renascendo das cinzas), entre o toque, a carícia, e o museu com as suas reproduções fidedignas, é esse descompromisso — não o confundamos com irresponsabilidade ética — que permite uma aproximação, uma afinidade, em suma, uma relação puramente literária com o lugar que se vai tornando no nome de um e de outro. Nome que desconhecem. O nome do desconhecido.O nome do que permanece secreto. O amor que necessariamente excede em ato a coisa amada. Ele diz-lhe, “Dás-me uma enorme vontade de amar.” (68).
No entanto, reconsideremos, não importará de facto ser o homem japonês e a mulher francesa? Com certeza, seria necessário, diremos, a conservação de uma distância, primeiramente firmada pelas origens geográficas distintas, distância subsumida, todavia, por uma língua comum, o francês em que falam um com o outro — cada um com os seus trejeitos, seus respetivos timbres — e responsável por um pacto tão singular quanto ele próprio intraduzível, isto é, desdobrável, mediado por uma língua reconhecida e nomeável como: o francês. Que semelhança pode esta língua encerrar se se tratam fundamentalmente de duas pessoas, um homem e uma mulher, e não um japonês, nem tampouco uma francesa? Consequentemente que diferença relevante designaria a nacionalidade, em face de uma tão profunda cisão (palavrosos, diríamos, cisão ontológica) entre um e o outro, como duas singularidades?
Um homem e uma mulher, reunidos numa diferença especulativa, essa dissimetria absoluta que só o segredo pode a si, como uma melodia infatigável, outorgar-se de um colorido. Uma dissimetria absoluta que, não dizendo nada, permite dizer qualquer coisa fora da lei, da palavra da lei que, diz Duras em conversa com Jean-Luc Godard, é o contrário da palavra escrita, o imperativo da persona-autorictas que fala contra a disseminação irradiante de uma vozearia musical: “Simplesmente a música é insubsumível, podes atirar coisas contra ela, bombas atómicas, prédios, para a tentares quebrar: nada o conseguirá fazer”.
A correspondência entre o casal e a catástrofe é puramente contingente. Quase poderíamos dizer: qualquer relação com a realidade é pura coincidência, exceto que a realidade está de tal forma absorvida, e assim confundida com todo o olhar que sobre ela se lançar num apelo de sentido, que se torna impossível ou ingénuo traçar o limite entre o que é dito, o que é mostrado e o que disso pertence ao factual e ao simplesmente autêntico. É num entre-tempo que nos situamos. A palavra está imbuída dessa animalidade louca de uma razão incompreendida (como fundamentalmente incompreendida é toda a singularidade) de que foi acometida Riva — e, daí, definida enquanto mulher —, aquando da sua paixão por um homem alemão, não por um homem, note-se, mas por um soldado alemão, o inimigo do seu país.
Essa paixão como forma de atraiçoar uma filiação (começando naquela relativa ao seu país de origem), doravante, exposta na sua impossibilidade, e tributada enquanto matéria moral apenas prestável a uma condenação pública, remissiva a uma invisibilidade, a um fazer de morto. Diferentemente dessa remissão à invisibilidade, como sentença punitiva, de trancar Riva numa cave no seguimento de um amor criminoso, é a impressão de estatuária que os corpos — “Volta-se sempre ao abraço, tão perfeito, dos corpos” (28) — apresentam. A imobilidade ou isolamento que o casal investe literária ou cinematograficamente, por imagens, dá-lhes o recorte fulgurante de uma passagem, fora, contudo, de qualquer lei, unidos na circunstância de com nada se parecerem, de nada serem a reprodução senão do eco de uma oportunidade perdida de se definirem, que os predispôs a um exercício infindo de dizer uma coisa como se fosse outra: “É uma história idiota… [Que história? De quem? E que importa? ] Como se dissesse <<Amo-te>>” (77).