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Marguerite Duras: “Hi-ro-shi-ma. É o teu nome”

Este artigo tem mais de 6 meses

A reedição de "Hiroshima Meu Amor" leva-nos de volta à história de amor, ao casal, que deve a todo o custo sobrepor-se à narrativa histórica do desastre nuclear.

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A escritora francesa fotografada em Paris em 1955, quatro anos antes da estreia do filme "Hiroshima Meu Amor"

Roger Viollet via Getty Images

A escritora francesa fotografada em Paris em 1955, quatro anos antes da estreia do filme "Hiroshima Meu Amor"

Roger Viollet via Getty Images

Estamos no verão de 1957, em Hiroshima, onde um casal se encontra maioritariamente em espaços interiores, recolhidos numa intimidade no precipício de um fim sempre iminente, como o tempo que passam juntos, incerto. Em Hiroshima, Meu Amor, de Marguerite Duras, recém-(re)editado pela Quetzal, com tradução de Maria José Palla e M.Villaverde Cabral, a autora declara o que o filme homónimo, de Alain Resnais, para o qual escreve este diálogo como argumento, deve e não deve parecer:

É preciso que este filme franco-japonês nunca apareça como franco-japonês, mas sim como anti-franco-japonês. Aí ganharemos a aposta.” (182)

É neste sentido, igualmente, que no homem japonês o espectador não deve senão reconhecer um homem belo, independentemente da sua fisionomia nipónica, e na mulher francesa, uma mulher “mais sedutora do que bela” (187), sem atentar na sua tipologia ocidental. A intenção é mais de desterritorializar do que de universalizar este encontro, gesto que prontamente volveria um dos múltiplos filamentos que sustentam a palavra e a dinâmica da lei. O amor não pertence a parte alguma, travessa de nenhures insondável que é, mas acontece em lugares que permitem, não uma nomeação, coincidindo sim com o único nome possível: “Hi-ro-shi-ma. É o teu nome. (127)” diz a mulher ao homem, já no termo do diálogo.

O que acontece é fundamentalmente isto: um casal — que permanece anónimo, os nomes não são desvendados — encontra-se amorosamente em Hiroshima, no período escasso de algumas horas, nunca precisadas com exatidão. A referida neutralidade cultural, imageticamente construída e literariamente antecipada, que uma e outra figura apresentam constitui o torniquete responsável pela tensão de contraste estabelecida relativamente ao aparato ético-espectacular e, portanto, devedor desse acontecimento absoluto que foi a explosão da bomba atómica em 1945; aparato rebarbativo de que serve de exemplo o filme sobre a paz (porque em Hiroshima não podem senão rodar-se filmes sobre a paz) no qual a mulher participa, razão pela qual se encontra naquela cidade.

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Sendo embora uma relação de contraste, é, todavia, a pontualidade daquele encontro amoroso que pode devolver o absoluto — anulando a distinção entre o bem e o mal, superando a bitola dialética, assim revelando a raiz da loucura como aceitação do novo e do absolutamente outro —, e não um qualquer equivalente emblemático dessa catástrofe com repercussões históricas mundiais. Sai-se da História para entrar, como paixão e fatalidade, na memória. Como o fim do encontro entre os dois, o curto-circuito do esquecimento é a miragem justamente atuante sobre as paisagens mentais — e os contactos físicos, o erotismo posto momentaneamente em xeque pelo amor — que se vão formando.


Título: “Hiroshima, Meu Amor”
Autora: Marguerite Duras
Tradução: Maria José Palla e M.Villaverde Cabral
Editora: Quetzal
Páginas: 188

Neste sentido, homem e mulher dispõem-se um para o outro, um sobre o outro, um contra o outro, a ler o seu passado, separados de  um qualquer registo eloquente, preventivo e cerimonioso para com o futuro. Ler a partir de um esquecimento, na leitura reconhecendo a falta que justamente acomoda uma forma de legibilidade: “Como tu, também eu sou dotada de memória. Conheço o esquecimento.” (30). Essencialmente este casal nada tem que ver com a catástrofe de 1945. Ele encontra-se, sim, naturalmente ligado às histórias pessoais que cada um transporta, histórias mais ou menos encantadoras, mais ou menos loucas, tratando-se este encontro de uma forma de viver à margem da récita delegada e reconstituinte do memorial, essa intenção exibida como forma perfeita, em tudo contrária ao que o amor só pode ser: bastardo, errático, incompleto e, no limite, mudo, afásico, exposição velada de um segredo que é. O toque presente, a carícia que Emmanuel Levinas pensou como gesto cego, dissipada como “um sonho impessoal, sem vontade e mesmo sem resistência”, confunde-se com a “recordação da recordação” da mulher, a bem dizer, na impossibilidade de não pensar senão por imagens, ecrãs mnésicos até à mais delirante perda de referência.

O encontro, do qual nada se pode esperar, descrença essa que o fundamenta numa sinceridade ímpar a duas partes, é, pois, um encontro no segredo como forma de absoluto. E o absoluto como o resíduo desse perdão fundamental da literatura de que nos fala Jacques Derrida (autor de Adieu à Emmanuel Levinas, de quem foi discípulo):

Não há literatura que, desde a sua primeira palavra, não peça perdão. No começo, houve o perdão. Por nada. Por nada querer dizer”

A história de amor do casal deve a todo o custo sobrepor-se à narrativa histórica do desastre nuclear — dizendo nada, por nada dizer a esse respeito —, desmaterializando a função identitária do registo fixo da nacionalidade, e da História como dívida a prestar ao passado, por interposto de um futuro equacionado como montagem sumptuosa de estilhaços. É, pelo contrário, a operação sempre infinda, e a-histórica, temperamental e não temporal, da aliança do segredo inscrita no desejo e que é aqui sublevada.

E é precisamente essa dissemelhança absoluta entre o amor e a catástrofe como facto histórico (como acontecimento, o amor e a catástrofe assemelham-se pela vida que continua depois do fim, renascendo das cinzas), entre o toque, a carícia, e o museu com as suas reproduções fidedignas, é esse descompromisso — não o confundamos com irresponsabilidade ética — que permite uma aproximação, uma afinidade, em suma, uma relação puramente literária com o lugar que se vai tornando no nome de um e de outro. Nome que desconhecem. O nome do desconhecido.O nome do que permanece secreto. O amor que necessariamente excede em ato a coisa amada. Ele diz-lhe, “Dás-me uma enorme vontade de amar.” (68).

Emmanuelle Riva (Elle) e Eiji Okada (Lui) em "Hiroshima Meu Amor", filme de Alain Resnais, estreado em 1959

No entanto, reconsideremos, não importará de facto ser o homem japonês e a mulher francesa? Com certeza, seria necessário, diremos, a conservação de uma distância, primeiramente firmada pelas origens geográficas distintas, distância subsumida, todavia, por uma língua comum, o francês em que falam um com o outro — cada um com os seus trejeitos, seus respetivos timbres — e responsável por um pacto tão singular quanto ele próprio intraduzível, isto é, desdobrável, mediado por uma língua reconhecida e nomeável como: o francês. Que semelhança pode esta língua encerrar se se tratam fundamentalmente de duas pessoas, um homem e uma mulher, e não um japonês, nem tampouco uma francesa? Consequentemente que diferença relevante designaria a nacionalidade, em face de uma tão profunda cisão (palavrosos, diríamos, cisão ontológica) entre um e o outro, como duas singularidades?

Um homem e uma mulher, reunidos numa diferença especulativa, essa dissimetria absoluta que só o segredo pode a si, como uma melodia infatigável, outorgar-se de um colorido. Uma dissimetria absoluta que, não dizendo nada, permite dizer qualquer coisa fora da lei, da palavra da lei que, diz Duras em conversa com Jean-Luc Godard, é o contrário da palavra escrita, o imperativo da persona-autorictas que fala contra a disseminação irradiante de uma vozearia musical: “Simplesmente a música é insubsumível, podes atirar coisas contra ela, bombas atómicas, prédios, para a tentares quebrar: nada o conseguirá fazer”.

A correspondência entre o casal e a catástrofe é puramente contingente. Quase poderíamos dizer: qualquer relação com a realidade é pura coincidência, exceto que a realidade está de tal forma absorvida, e assim confundida com todo o olhar que sobre ela se lançar num apelo de sentido, que se torna impossível ou ingénuo traçar o limite entre o que é dito, o que é mostrado e o que disso pertence ao factual e ao simplesmente autêntico. É num entre-tempo que nos situamos. A palavra está imbuída dessa animalidade louca de uma razão incompreendida (como fundamentalmente incompreendida é toda a singularidade) de que foi acometida Riva — e, daí, definida enquanto mulher —, aquando da sua paixão por um homem alemão, não por um homem, note-se, mas por um soldado alemão, o inimigo do seu país.

Essa paixão como forma de atraiçoar uma filiação (começando naquela relativa ao seu país de origem), doravante, exposta na sua impossibilidade, e tributada enquanto matéria moral apenas prestável a uma condenação pública, remissiva a uma invisibilidade, a um fazer de morto. Diferentemente dessa remissão à invisibilidade, como sentença punitiva, de trancar Riva numa cave no seguimento de um amor criminoso, é a impressão de estatuária que os corpos — “Volta-se sempre ao abraço, tão perfeito, dos corpos” (28) — apresentam. A imobilidade ou isolamento que o casal investe literária ou cinematograficamente, por imagens, dá-lhes o recorte fulgurante de uma passagem, fora, contudo, de qualquer lei, unidos na circunstância de com nada se parecerem, de nada serem a reprodução senão do eco de uma oportunidade perdida de se definirem, que os predispôs a um exercício infindo de dizer uma coisa como se fosse outra: “É uma história idiota… [Que história? De quem? E que importa? ] Como se dissesse <<Amo-te>>” (77).

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