Patti Smith está sentada ao canto da sala, debruçada sobre uma mesa que pertenceu ao poeta português Mário Cesariny (1923-2006). É nela que desenha e tira apontamentos antes de voltar a deambular por entre os muitos objetos, artefactos e fotografias que compõem a instalação visual e sonora que nos últimos dias, entre momentos de meditação e diversos reajustes, ajudou a montar em Lisboa, no MAC/CCB Museu de Arte Contemporânea, com a ajuda de Stephan Crasneanscki, fundador da Soundwalk Colective. É a “primeira saída internacional” – explica a curadora Chloé Siganos – da mostra a que os dois artistas chamaram “Evidence”, apresentada originalmente no Centro Georges Pompidou, em Paris, em 2022.
A experiência imersiva, site-specific e multidisciplinar, que combina dimensões sonoras, visuais e físicas, inspira-se nas viagens e nas obras de três emblemáticos poetas franceses: Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal. A partir de vestígios dos locais por onde estes passaram, respetivamente no México, na Abissínia e na Índia, explora-se a busca e a poética de cada um deles, numa instalação que é, de igual forma, uma ode a um mundo sem fronteiras. O espaço pensado e desenvolvido pela Soundwalk Collective apresenta sons, filmes, imagens abstratas, objetos e arte encontrada nestes lugares, conduzindo o visitante por uma instalação investigativa que justapõe fotografias, textos e obras de arte originais de Patti Smith. A mesa de Cesariny – diga-se – foi um apontamento de última hora, que na perspetiva da poeta e compositora norte-americana acrescenta “mais uma viagem poética” às que ali já se encontram, neste caso daquele que foi um dos mais singulares artistas portugueses do século XX.
Mas voltemos à proposta de “Evidence”: de auscultadores postos, cada visitante é convidado a explorar livremente a sala expositiva, caminhando por entre vestígios e criando o seu próprio mapa afetivo. “As pedras, a terra vermelha, a madeira e todos os documentos reunidos fazem parte de um processo de trabalho que demorou anos a criar”, salienta Patti Smith, que acredita na componente sensorial e transformativa que a mostra pode ter nos visitantes. São as evidências – como nota – de uma colaboração também ela artística e sentimental que começou quando a “madrinha do punk”, conheceu Stephan Crasneanscki numa viagem de avião. “Ele estava sentado ao meu lado a ler a Nico e disse que a ia homenagear, mas que não tinha ainda alguém para fazer as leituras. Foi quando lhe disse que eu gostava de ajudar”, conta.
Desse projeto nasceu então um diálogo íntimo que se mantém até hoje. Depois de Nico (cantora e atriz alemã) e do disco que daí surgiu, “Killer Road” (2016), os dois criadores centraram as suas atenções nos poetas franceses. Entre 2017 e 2021, colaboraram na criação de “Perfect Vision”, um tríptico de álbuns inspirados na obra de Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal e, finalmente, começaram a reunir os materiais de pesquisa a fim de alcançar uma nova visão e perspetiva de si mesmos e da sua arte. Gravados, respetivamente na serra Tarahumara, no México, no planalto abissínio da Etiópia e no topo dos Himalaias, na Índia, os três discos alicerçam-se na ideia de que cada paisagem contém memórias adormecidas que são testemunhos da passagem humana. “Evidence” é o capítulo final desta aventura.
Sem um objetivo definido, salientam os criadores, a mostra operática explora a noção de se poder criar “um espaço infinito e íntimo”, ao qual se pode agregar a questão: “até onde é que podemos ir?”. Cabe a cada visitante fazer o seu próprio percurso e formular a sua resposta. “Parte do processo está assente nesta ideia de não saber o que podemos encontrar. Tudo é possível. É um ato de escutar e deixar que essas ligações venham, naturalmente, parar à superfície”, salienta Stephan Crasneanscki.
Do monte análogo para o mundo
Para criar esta “aventura espiritual” em Lisboa, realça a curadora, foi necessário reformular a disposição dos objetos na sala, mas mantendo o mote “de se criar uma experiência no centro do museu”. Dessa forma, pretende-se repensar também o foco de cada visitante que depois da luz e das paredes brancas, se digna a entrar num espaço escuro e imersivo. Estamos, afinal de contas, num lugar solitário, descrito pela própria Patti Smith numa canção que escutamos nesse deambular: “In a room like no other/ In the solitary cell/ Clouded with light/ Sitting straight at his length / A burgeoning flame, a flower/ The principal within the hollow/ The excrement of divine sorrow”.
“Desta forma, a exposição distende a visita cronometrada para chegar a uma temporalidade alargada e difusa composta de passados e presentes – ou melhor, integra-nos num presente partilhado por todos os seres, vivos ou mortos, que se encontram nesta viagem multidimensional. Estas paisagens sonoras são ‘mundos despertos’, para usar a bela expressão cunhada por Stephan Crasneanscki, que seguiu os passos de Daumal, Artaud e Rimbaud com o propósito de reconstruir os caminhos percorridos pelos três poetas e explorar os lugares das suas viagens, cada uma das quais realizada num hiato ou ponto de viragem das suas histórias e obras individuais”, pode ler-se no texto que Chloé Siganos assina sobre a mostra.
Num dos seus aspetos mais importantes, encontramos uma enorme parede de investigação, numa justaposição de arquivos pessoais de Crasneanscki e Smith e documentos relacionados com expedições feitas por Daumal, Artaud e Rimbaud. “É efetivamente um mapa do processo. Não tem a pretensa de ser uma obra de arte, mas sim a explicação do nosso trabalho, seja das viagens do Stephan, como das leituras e desenhos que desenvolvi no meu atelier. Por outro lado, conta muito sobre estes poetas e sobre a beleza e o caos na vida que cada um deles sentiu”, completa Patti Smith. Muitas outras referências se juntam a esta conversa contínua entre o fundador da Soundwalk Collective e a autora de “Just Kids”. Pode falar-se dos ecos com o trabalho dos cineastas como Alejandro Jodorowsky e Peter Brook, de músicos como John Lennon ou Bob Dylan, mas também na relação com escritos religiosos e nas referências a diferentes períodos históricos. Uma vez mais, essa jornada de possibilidades é infinita.
Aos 77 anos, Patti Smith mantém a sua paixão artística por Rimbaud, poeta que começou a ler aos 15, a sentir o ímpeto disruptivo de Artaud e a colocar a si própria a questão deixada por Daumal, o autor de O Monte Análogo. “Num dos seus diários, Daumal escreveu ‘e tu, o que é que procuras?’. É uma questão que agora deixamos para as pessoas”. Com essa mesma pergunta em mente, recordamos os gritos dos pássaros que circulam no alto da cidade de Harar, na Etiópia, quando entramos em “Evidence”, bem como o som metálico de um portão que se fecha na estação de comboios de Charleville-Mézières, anunciando o regresso do Rimbaud a França, em 1891, depois de uma década na Abissínia.
Entre as centenas de sensores instalados neste espaço e os milhares de fragmentos sonoros, regressamos à caverna em que Artaud participou em cerimónias de peiote e às placas de ardósia dos Himalaias, que são depoimento dessa tentativa frustrada de Daumal em escalar a montanha. O que é que estes lugares nos dizem? A resposta está na forma como olhamos para o mundo, diz Patti Smith, e que pode ir das reflexões mais poéticas sobre o lugar que ocupamos até às questões mais práticas sobre as alterações climáticas ou sobre a guerra e os muitos refugiados que tentam escapar dessa condição.
No mundo atual, dominado pelo ruído visual e sonoro, pela aceleração e pela exacerbação da violência, a viagem poética e imóvel que se encontra em “Evidence” pode ser mais do que uma forma de escapismo individual. Em última instância, enfatiza a falta de empatia e de conexão entre pessoas e salienta a importância de voltarmos à natureza, mas desta feita munidos de versos e experiências de vida que derrubam as fronteiras que tantas vezes nos limitam a um tempo e a uma espacialidade. Para a sua síntese, voltamos às palavras perspicazes de Patti Smith: “É uma forma de caminharmos coletivamente com as nossas mentes. Pode ser uma experiência serena, mas também ativa que transforma a nossa forma de estar no mundo”.
O espectáculo “Correspondences”, do Soundwalk Collective com Patti Smith, sobe ao palco do Grande Auditório do CCB este sábado, 23, às 19h, e do Theatro Circo de Braga no domingo, 24, às 20h30.