Há alguma ironia no facto de um filme sobre os tormentos emocionais e familiares de um homossexual ter sido estreado numa plataforma de streaming que parece gerir o seu (ótimo e competitivo) catálogo como um segredo bem encafuado num armário. All Of Us Strangers (na tradução portuguesa, Desconhecidos), premiado filme de Andrew Haigh que tem reunido um certo estatuto de culto rápido, não chegou a estrear-se por cá em sala, mas está desde há dias disponível na Disney Plus. Um filme adulto e duro, com o qual me deparei por acaso quando estava a meter o meu miúdo a ver a Bluey.
Realizado e escrito por Haigh a partir de uma adaptação livre de uma obra do escritor japonês Taichi Yamada, Desconhecidos encaixa numa categoria algo própria: a de filme de fantasia queer. Conta a história de Adam, um esquivo guionista que perdeu os pais aos 12 anos e que tenta agora escrever um argumento que recupere as memórias que teve e as que não chegou a construir. Na noite solitária em que começa o filme, Adam é interpelado por Harry, um vizinho alcoólico com o qual depressa desenvolve uma relação intensa e carnal.
Mas o ritmo desta potencial história de amor anda à cadência da relação primordial que o guionista tem de resolver: a relação com os seus pais. Por isso, Adam conversa bastante com eles, numa lógica a fazer lembrar o clássico Sexto Sentido. Apesar de distinto do filme de M. Night Shyamalan, Desconhecidos tem trejeitos de filme de suspense/terror. O único monstro é o luto e as únicas entranhas de fora são metafóricas, com um ambiente lúgubre, um jogo tenso de reflexos, um ritmo aparentemente calmo que deixa antever uma explosão a qualquer momento.
[o trailer de “Desconhecidos”:]
A realização e o guião de Desconhecidos são musculados e eficazes, mas o filme é um daqueles casos em que a obra é carregada sobretudo pela qualidade das interpretações. Com muito poucos atores e personagens, a longa metragem conta com um dos mais interessantes intérpretes atuais, Andrew Scott (de séries como Sherlock Holmes e Fleabag e em breve a fazer de Ripley numa nova versão da personagem de Patricia Highsmith), mas também com Paul Mescal (Normal People, After Sun e o próximo Gladiador) e ainda Jamie Bell (Billy Elliot) e Claire Foy (The Crown). Mesmo sem efeitos especiais de monta ou cenas para IMAX, é uma pena não ter sido estreado no grande ecrã, já que é um filme que ganha com a claustrofobia da sala de cinema. Tirarmos uma hora e 45 minutos para nos sentirmos tristes em paz, sem interrupções ou distrações, devia ser um direito inalienável.
Bastante claro e descomplexado nas cenas de intimidade entre Adam e Harry, Desconhecidos é apesar disso muito mais sobre a relação do protagonista com os pais do que sobre a relação amorosa entre os dois vizinhos. É que Adam pode ainda mal conhecer Harry, mas os seus pais, com quem nunca interagiu fora de um contexto de infância, são os verdadeiros “desconhecidos” que o título aborda. Adam é até, no momento da trama, mais velho do que os seus progenitores, para sempre congelados na idade com que morreram.
Esta obsessão pelos pais leva Adam a viver num presente que mistura tiques e bandas sonoras do passado, no qual ainda tem pais não só vivos como interessados e disponíveis — como, na realidade, não tem ninguém na sua vida palpável. É, por isso, particularmente curiosa a cena em que faz um coming out a esta versão da sua mãe em modo amigo imaginário — e mesmo neste cenário que controla em absoluto, o momento não é pacífico.
As linhas desfocadas entre passado e presente estão também no uso aprimorado das canções, que ganham uma suprema importância em All Of Us Strangers. Destaque para o tema algo obscuro dos Blur Death Of A Party (do disco homónimo de 1997), mas também para Always On My Mind na versão dos Pet Shop Boys e para a cena fulcral ao som de The Power of Love dos Frankie Goes to Hollywood.
Desconhecidos é um filme duro sobre solidão, luto, trauma e a dúvida permanente: se é possível recomeçar. “O futuro não interessa”, diz a determinado momento a personagem de Andrew Scott, ator que entra em rigorosamente todas as cenas do filme, mas muito raramente com algo que se assemelhe a um sorriso. O final é trágico, inescapável. E isto não é spoiler: é óbvio ao longo de todo o filme que uma história destas nunca teria um final feliz porque é exatamente um tratado sobre quando é impossível evitar um final triste.