Siga aqui o liveblog sobre o conflito israelo-palestiniano
Depois da Ucrânia, Gaza é o segundo cenário de guerra em que atua a World Central Kitchen, uma organização não governamental criada pelo chef espanhol José Andrés que se tem especializado em ajuda alimentar de emergência que escasseia em cenários de catástrofe ou conflitos. Segundo a ONG, já distribuiu mais de 43 milhões de refeições a civis no enclave desde outubro. Era numa dessas operações que estavam envolvidos os sete funcionários que morreram na segunda-feira num ataque das forças israelitas.
A comida tem sido preparada em cozinhas comunitárias “onde palestinianos estão a alimentar palestinianos“, escreveu José Andrés num artigo de opinião no jornal Ynet. E tem sido esse o modus operandi da organização: criar redes locais de ajuda alimentar.
Tudo começa em 2010 quando, nos primórdios da WCK, Andrés viajou para o Haiti para prestar apoio de emergência após o terramoto que matou mais de 200 mil pessoas. Aí, aprendeu a cozinhar feijão preto “da forma que os haitianos gostam de os comer” e percebeu como, numa situação limite de crise, a comida típica pode dar um conforto a quem tudo, ou quase tudo, perdeu.
Além do Haiti, já atuou em crises nas Bahamas, Guatemala ou na fronteira dos EUA com o México. Em 2022, no início da invasão russa, passou a prestar ajuda alimentar na Ucrânia — em Kharkiv, logo em abril de 2022, um míssil russo atingiu uma cozinha da organização e o mesmo viria acontecer mais de um ano depois, em Zaporíjia. A ONG continua a prestar assistência na Ucrânia.
Em Gaza, até ao ataque que matou sete funcionários, tinha estabelecido mais de 60 cozinhas comunitárias e alimentava 350 mil pessoas por dia, escreve a Reuters. Após o incidente fatal, Andrés decidiu suspender as operações no enclave para avaliar a continuidade das operações.
“Quando os outros estão a avaliar a situação, nós já estamos a alimentar”
“Uma refeição atenciosa e acabada de fazer não só é menos uma coisa com que alguém tem de se preocupar na sequência de uma catástrofe, como é um lembrete de que não está sozinha, que alguém está a pensar em si e que alguém se preocupa. A comida tem o poder de ser o alimento e a esperança de que precisamos para nos reerguermos nos momentos mais negros”, lê-se no site da ONG.
Sempre que possível, a WCK usa uma rede de chefs locais para servir refeições com receitas igualmente locais e assume-se como uma organização anti-burocrática, que atua enquanto outras decidem que estratégia tomar. “Quando os outros estão a avaliar a situação, nós já estamos a alimentar e, durante o processo, apercebemo-nos do que se está a passar e não o contrário”, disse Andrés numa entrevista recente. Cerca de 400 palestinianos colaboram com a organização.
O The New York Times diz que a ONG foi “pioneira numa nova forma de fazer chegar ajuda de emergência usando mão de obra e receitas locais”. No caso de Gaza, membros do staff e voluntários já fizeram “centenas de panelas de mujadara“, um prato típico de lentilhas e arroz com cebola frita. A ONG já enviou para Gaza mais de 1.700 camiões com comida e equipamento de cozinha.
Na cidade de Rafah, onde tem a sua cozinha principal, a WCK garante 50 mil refeições quentes por dia, adianta o Wall Street Journal. O jornal conta que quando as reservas de gás terminaram, logo no início do conflito, a ONG produziu fogões a lenha que não colocam em causa a capacidade de cozinhar em grandes quantidades.
Segundo a Reuters, a WCK começou no mês passado a transportar ajuda alimentar para civis no norte de Gaza através de um corredor marítimo a partir de Chipre, em colaboração com a ONG espanhola Open Arms. A iniciativa foi tomada depois de Israel ter recusado a entrada de ajuda humanitária através da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos no norte de Gaza, alegando, sem apresentar provas credíveis, que alguns funcionários da agência participaram no ataque de 7 de outubro.
Mas logo no início do conflito, a WCK fez parcerias com restaurantes e hospitais em Israel para alimentar deslocados e feridos do ataque de 7 de outubro. Em fevereiro, passou a ajudar palestinianos em Gaza através do envio de ajuda aérea. José Andrés já explicou que decidiu envolver-se na entrega de ajuda humanitária após um convite do governo cipriota e espera que outras organizações lhe sigam o exemplo.
A ONG descreve-se como a “primeira a chegar à linha da frente”, com uma abordagem “empreendedora e adaptativa” para fazer chegar ajuda rápida “em vez de pedir autorização ou seguir sistemas e burocracias que carecem de urgência e flexibilidade”.
Os 100 milhões de dólares doados por Jeff Bezos e a polémica com Trump
A ONG vive de donativos. O The New York Times (NYT) escreve que a WCK angariou mais de 30 milhões de dólares em 2019 e 250 milhões em 2020. Um dos donativos mais volumosos terá sido o de Jeff Bezos, fundador da Amazon, de quem recebeu 100 milhões de dólares (mais de 92 milhões de euros), em 2021.
José Andrés, 54 anos, nasceu nas Astúrias, Espanha, e trabalhou no restaurante experimental El Bulli, perto de Barcelona. Em 1991, mudou-se para os EUA, onde criou o restaurante de tapas Jaleo. Hoje, a sua empresa, ThinkFoodGroup, tem mais de 20 restaurantes, incluindo um com duas estrelas Michelin.
Andrés recebeu das mãos do então Presidente dos EUA Barack Obama o prémio Outstanding American by Choice, em 2014, atribuído a cidadãos naturalizados norte-americanos que alcançaram feitos notáveis.
Já com Donald Trump, a relação foi mais turbulenta. Depois das declarações do magnata republicano durante a primeira campanha presidencial em que apelidou cidadãos mexicanos como “violadores” e “assassinos”, Andrés cancelou os planos para um restaurante no hotel de Trump em Washington. O empresário processou o chef por romper com o contrato, mas os dois chegaram a acordo em 2017.
No ano passado, a organização esteve no centro de uma polémica, com alegações de que os voluntários seriam coagidos a entregar refeições sem que estivessem garantidas as condições de segurança. A ONG prometeu alterações nos procedimentos e o líder da Anera, organização que trabalhou com WCK, diz ao NYT que as operações, mesmo nas zonas de conflito, se tornaram mais “profissionais”.
Um testemunho revelado pelo The New York Times revela, também, que quando estabeleceu uma cozinha em Przemysl, na Polónia, perto da fronteira com a Ucrânia, não havia nem foram transmitidos aos colaboradores protocolos de segurança nos períodos em que não estavam a cozinhar. Kim O’Donnel, autora de livros culinários que participou nessa operação, diz que os voluntários nem sequer foram alertados para a curta distância face à fronteira, o que fez com que alguns entrassem em território ucraniano sem saberem, tendo enfrentado dificuldades para regressar.
ONG diz que já serviu 43 milhões de refeições em Gaza
Esta quarta-feira, José Andrés escreveu um artigo de opinião no jornal Ynet em que tece várias críticas à atuação das forças de Israel: “Israel é melhor do que a forma como esta guerra está a ser conduzida”, diz mesmo. Andrés refere que os sete voluntários da WCK eram “o melhor da humanidade”, “arriscaram tudo para a mais fundamental atividade humana: partilhar a nossa comida com outros” e acreditavam que a comida é um “direito humano universal”.
Diz que os ataques que atingiram os funcionários da ONG “não foram só mais um erro infeliz no nevoeiro da guerra”. “Foi um ataque direto a carros claramente identificados, cujos movimentos eram conhecidos pelas IDF [Forças de Defesa de Israel]”, aponta.
Foi, também, o “resultado direto da política do governo de reduzir a ajuda humanitária a níveis desesperantes”. “A nossa equipa estava a caminho de uma entrega de quase 400 toneladas de ajuda por mar, o nosso segundo carregamento, financiado pelos Emirados Árabes Unidos, apoiado pelo Chipre e com autorização das IDF”. Foi por a comida ser “tão rara” em Gaza que os voluntários “colocaram as suas vidas em risco”. “Não perguntamos a que religião pertences. Só perguntamos de quantas refeições precisas”, escreve ainda.
José Andrés lembra que a sua ONG já alimentou tanto palestinianos como israelitas. Em Israel, diz, foram servidas mais de 1,75 milhões de refeições quentes, incluindo em hospitais. No artigo, Andrés diz que a ONG tem trabalhado de perto com as forças militares israelitas e os civis, assim como representantes em Gaza e nos países árabes da região, “a única forma” de conseguir fazer chegar ao território um navio carregado de alimentos.
Em Gaza, a ONG distribuiu mais de 43 milhões de refeições, segundo diz, tendo preparado comida em 68 cozinhas comunitárias “onde palestinianos estão a alimentar palestinianos”. “Conhecemos os israelitas. Os israelitas, nos seus corações, sabem que a comida não é uma arma de guerra”, acrescenta, considerando que Israel é “melhor do que a forma como a guerra está a ser conduzida”.
“É melhor do que bloquear o acesso de civis a alimentos e medicamentos. É melhor do que matar trabalhadores humanitários que coordenam os seus movimentos com as IDF”, escreve ainda. E pede que o governo israelita abra corredores terrestres para fazer entrar alimentos e medicamentos e que “páre de matar civis e trabalhadores humanitários”.