O caso começou no sábado da semana passada, quando um grupo de pescadores brasileiros saiu ao mar na costa norte do país, ao largo da cidade de Bragança, no estado do Pará. Durante a faina, depararam-se com um bote aparentemente abandonado, muito degradado e à deriva. Lá dentro, nove cadáveres em avançado estado de decomposição.

Os pescadores alertaram a polícia, que resgatou o bote e deu início a uma investigação internacional com o auxílio da Interpol. Em poucos dias, foi possível chegar a uma primeira conclusão: tudo indica que as nove vítimas seriam migrantes de origem africana que tinham partido naquela embarcação precária da costa da Mauritânia com rumo às ilhas Canárias (Espanha), para tentarem entrar na Europa.

Em alto-mar, terão perdido o rumo e passado largas semanas à deriva, acabando morrer por fome e desidratação — e as correntes marítimas levariam a pequena embarcação até à costa do Brasil, a mais de quatro mil quilómetros do ponto de partida.

O jornal espanhol El País conta que o caso é o mais recente episódio de um “bote fantasma” a dar à costa. Trata-se de um fenómeno que se tem registado pelo menos desde 2021. São pequenas embarcações precárias usadas por um grupo de migrantes para tentar alcançar a Europa, como milhares de outras, mas com uma diferença: não conseguiram avisar ninguém — nem um familiar, nem uma ONG, nem sequer lançar um alerta marítimo — de que partiram, pelo que ninguém os procura.

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Na maior parte dos casos, só são encontrados tarde demais, quando todos, ou quase todos, os ocupantes já morreram de fome e desidratação, depois de terem perdido o rumo. Vários destes “botes fantasma” acabaram mesmo por ser encontrados na zona entre as Caraíbas e a costa norte do Brasil.

De acordo com o mesmo jornal, os investigadores brasileiros recuperaram do bote um conjunto de provas que poderão ajudar a identificar com maior exatidão a origem da embarcação e das pessoas que a ocupavam — mas a tarefa não será fácil. O grau de decomposição dos cadáveres era de tal modo avançado que ainda não tinha sido possível identificar o sexo e a idade das vítimas.

A bordo do bote foi encontrado um documento de identificação da Mauritânia e outro do Mali, que tinha um carimbo de entrada na Mauritânia com data de 17 de janeiro de 2024. Esta é, para já, a única pista que permite aos investigadores estabelecer uma janela temporal para a partida da embarcação e supor que terá partido da Mauritânia.

Por outro lado, as autoridades também suspeitam de que o bote transportava muito mais pessoas. Não só a embarcação tem capacidade para 30 ou 40 pessoas como, a bordo, foram encontrados 25 casacos impermeáveis e 27 telemóveis.

“Acreditamos que, à medida que morriam, iam sendo deitados à água. Os últimos sobreviventes, os nove, já não tinham forças para isso”, disse ao El País o superintendente da Polícia Federal de Pará, José Roberto Peres, que está a liderar a investigação.

Também àquele jornal, Edwin Viales, responsável do Projeto Migrantes Desaparecidos da Organização Internacional para as Migrações, explicou como o fenómeno dos “botes desaparecidos” tem seguido um padrão: “Chegam a este lado do mundo porque são apanhados na corrente das Canárias, a mesma que trouxe Cristóvão Colombo à América. Desviam-se por causa de fenómenos climáticos extremos ou porque a embarcação tem defeitos. Como não estão preparados para grandes travessias do oceano, ficam sem mantimentos, morrem desidratados e de inanição.”