Segundo o curador, Miguel von Hafe Pérez, esta mostra, integrada nas celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, que estará patente de 24 de abril a 20 de outubro, constituiu um “grito de liberdade” que tem de ser contínuo. “Não é uma exposição sobre o 25 de Abril” com as “representações icónicas” associadas à época, nem aquela, “ainda por fazer”, “sobre os movimentos artísticos africanos de contestação colonial”.
É antes “uma oportunidade única para pensar este período tão rico quanto conturbado da nossa história da arte, onde o manifesto político tanto pode assumir uma vertente mais panfletária, como afirmar-se através de obras de cariz mais conceptual enquanto suporte discursivo e formal das liberdades desejadas e atingidas.”
Com obras de antes e depois de Abril, e as “declinações visuais” que esse tempo permitiu, “preferiu-se mostrar como os artistas saem para o espaço público para fotografar pessoas, situações e marcas da Revolução”, como essas situações e marcas se manifestam ou não nos gestos e nos próprios corpos e nas suas representações.
“Interessava-me muito perceber o lugar do corpo como um ‘sismógrafo’ que não existia” durante a ditadura, pela repressão imposta, e como as representações acabavam assim por ser um confronto com o regime, “e como essa explosão se dá, ou não, depois do 25 de Abril”, explicou o curador, à margem de uma visita de imprensa.
“Pré/Pós – Declinações visuais do 25 de Abril” soma mais de 300 trabalhos em pintura, escultura, fotografia, filme, gravura, instalação, cartaz e edição de livros e revistas de mais de 120 artistas. E reúne nomes tão distintos entre si como Alberto Carneiro, Álvaro Lapa e Ana Hatherly, Eduardo Batarda, Fernando Lanhas e João Abel Manta, Julião Sarmento, Júlio Pomar, Lourdes Castro e Malangatana, Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria, Nikias Skapinakis e Noronha da Costa, Paula Rego, Querubim Lapa, René Bertholo e Túlia Saldanha.
As obras expostas, explicou Miguel von Hafe Pérez, estão no arco cronológico de 1970 a 1977: “O que me interessava era dar uma perspetiva do que era Portugal nos anos 1970 para perceber a relevância do 25 de Abril entre aquilo que era uma liberdade desejada e aquilo que é uma liberdade conquistada, que é o fio condutor [da exposição]”.
Miguel Von Hafe Pérez referiu que a mostra dá visibilidade a artistas e obras pouco conhecidas em termos museológicos, e que “é uma oportunidade” para pensar aquele período: “Se não se olha para a História, se não há momentos destes para perceber o que é que é a arte, neste caso dum contexto, pré e pós revolucionário, se não há essa possibilidade de usar essa capacidade de memória critica, alguém o vai fazer por nós e fará mal, porque não tem essa capacidade de fazer exame individual”, disse.
Das questões feministas que o pós-25 de Abril permitiu discutir – e que “ainda perduram enquanto cicatrizes estruturais” -, aos “intentos coletivistas” na criação de alguns grupos de artistas, a mostra permite o vislumbre de uma época e assumir o seu olhar: “Que futuro vislumbrariam no contexto pré-revolucionário? E que futuro ajudaram a construir no pós-Revolução?”, interroga-se o curador no catálogo que acompanha a mostra.
No texto que assina neste volume, Miguel Von Hafe Pérez cita Álvaro Lapa: “Falo por mim. A diferença [para um artista, entre o antes e o pós-25 de Abril] é que antes era mais novo e o país mais velho. Depois fomos ficando da mesma idade.”
A afirmação vem de 1994 e “revela o estado ambivalente comum a muitos relativamente aos anos de consolidação democrática”, escreve o curador.
A escolha desta cápsula de tempo entre 1970 e 1977 “pretende concentrar a atenção num processo que se poderia evidentemente estender na sua cronologia”, mas que termina no ano em que a exposição coletiva “Alternativa Zero”, organizada por Ernesto de Sousa, em Lisboa, “representa uma institucionalização da vanguarda e, assim, uma certa normalização que doravante se estabeleceria enquanto pano de fundo comparativo.”
No texto que acompanha a mostra, Von Hafe Pérez lembra ainda que “o próprio processo de constituição da Fundação de Serralves pode ser associado a um movimento de artistas, escritores, jornalistas e populares nas ruas do Porto no imediato pós-25 de Abril, nomeadamente o famoso ‘Enterro do Museu Soares dos Reis’, que conduziria à criação do Centro de Arte Contemporânea dentro das instalações do próprio [museu], dirigido por Fernando Pernes”, que também viria a ser primeiro diretor da Fundação de Serralves.
“Quando, no dia 29 de março de 1974 se realizou o I Encontro da Canção Portuguesa no Coliseu dos Recreios, a força da palavra poética derrubou simbolicamente um regime que se arrastava numa guerra colonial indecorosa e na visão refratária e mesquinha das liberdades individuais. Entoando ‘Grândola, Vila Morena em uníssono, esses milhares de vozes anteciparam a alegria que pouco menos de um mês depois se viveria na rua”, escreveu o curador da mostra.
Por isso, “Pré/Pós – Declinações visuais do 25 de Abril” é também “um grito de liberdade” que “não precisa de ser estridente mas que tem de ser contínuo”, afirma Von Hafe Pérez.
“Grito no sentido em que hoje em dia, de facto, a realidade só se pode construir através de uma memória critica. Estamos a viver uma encruzilhada civilizacional onde a memória começa a ser construída por algoritmos e a certa altura esses algoritmos vão perceber que já nem precisam dos humanos.”