No MAAT a revolução não é do povo. São raros os cravos, os slogans e os contra-slogans, os cartazes, imagens do coletivo. Pelo contrário. A interrogação aqui, feita pelos curadores João Pinharanda e Sérgio Mah, é muito mais sobre como é que as artes plásticas portuguesas incorporaram a Revolução e, a partir dela, construiram caminhos individuais, questionaram a tradição e as vanguardas e chegaram ao ano de 2024 criando obras que incorporam as novas inquietações sociais e planetárias sem abdicar de colocar no centro a sua própria experiência individual.
Hoje Soube-me a Pouco — Introversões e Utopias artísticas no pós 25 de Abril: o título da exposição parte do verso da famosa canção de Sérgio Godinho, de 1981, Com um Brilhozinho nos Olhos, e expõe 40 artistas que marcaram a arte em Portugal nas cinco décadas seguintes à Revolução. O título, como explica Sérgio Mah, “é um pouco provocador”, porque “é retirado de uma canção de amor e não de uma canção revolucionária”. “O próprio autor fez esta mudança de cantar sobre a liberdade nos anos 70 e nos anos 80 estar a cantar sobre coisas mais individuais”, esclarece Mah.
A mostra, que fica patente até 26 de agosto, percorre uma pluralidade de linguagens e universos pictóricos, entre a pintura, a colagem, a fotografia, o vídeo ou a escultura, onde se questiona sobretudo o corpo particular, o psicológico, as pulsões, os medos, os desejos. Mais do que mostrar nostalgicamente o passado cristalizado, o MAAT, quer dar a ver o futuro em movimento constante.
“Cresce-se na tempestade”, escreveu Van Gogh, esse génio que ousou fazer do seu mundo interior um veículo para manifestar o exterior. Esta afirmação poderia servir para explicar como é que as artes plásticas e os seus criadores atravessaram os anos 70, da revolução, ao PREC, das utopias coletivas, e algo paternalistas de “levar a arte ao povo”, até à crise económica profunda que se abateu sobre o pais, da entrada na CEE à mercantilização crescente da arte nos anos do cavaquismo, dos artistas exilados aos artistas internacionalizados, da utopia revolucionária às distopias climáticas.
“Há uma energia coletiva que nasce com a revolução, mas que depois se transforma, se fragmenta em processos criativos individuais, autónomos. Muitos já vinham de antes do 25 de Abril, outros aproveitaram a nova liberdade para um experimentalismo nos meios e materiais, na hibridização, no uso da ironia e da tecnologia”, explica João Pinharanda.
Era preciso inventar tudo de novo num país cuja arte tinha parado no Modernismo, onde a maioria dos compradores só gostava de quadros naturalistas ao estilo século XIX, um país periférico só vagamente tocado por movimentos como o Cubismo, o Dadaismo, o Surrealismo, a Pop Art, o Abstracionismo. Onde não havia um curso de História da Arte, não havia revistas e, sobretudo, não havia um real interesse do estado em investir na Cultura. Muitas das obras que podemos ver nesta exposição são, pois, gestos do principio do mundo, onde cada artista forja a sua relação com a tradição e a modernidade, joga com as influencias internacionais que finalmente chegavam, se autoriza a explorar temas tabu, como o corpo, a sexualidade, o erotismo, o papel das mulheres, explora novos suportes, especialmente a fotografia como a anti-pintura, a relação entre a palavra e a imagem ou a relação entre a arte e o marketing, a publicidade, o mercado.
De facto, só no primeiro núcleo podemos ver obras produzidas em 1974 e só aí vamos encontrar uma iconografia que nos remete para o 25 de Abril ou, pelo menos, apara os seus símbolos mais populares; os cravos vermelhos recortados sobre um poema de Sophia, de José Escada, um vídeo com imagens da época de Ana Hatherly, as ironias de Eduardo Batarda, Luísa Cunha, António Sena, Júlio Pomar. Depois as salas desdobram-se em universos particulares, que mostram que muitos artistas portugueses rapidamente se afastaram das utopias revolucionárias para explorarem as suas paixões, narcisismos, questionaram quase obsessivamente os objetos, como Lourdes Castro, os contos e lendas tradicionais como Paula Rego, a domesticidade e os espaços interiores como Helena Almeida ou Paulo Nozolino, também o corpo, como Gaëtan.
“Não queríamos fazer uma ilustração do processo de democratização, mas mostrar os seus efeitos. Se a arte se define sobretudo pelas relações e tensões, entre os imaginários individuais e os coletivos vemos que a arte em Portugal na pós revolução sofreu uma expansão dos universos individuais, idiossincráticos. Quando escolhemos o verso do Sérgio Godinho também queríamos enfatizar que o tempo que nos interessa é o ‘hoje’ e não o ‘ontem'”, esclarece Sergio Mah. “Isto fez com que optassem por três tipos de artistas: os que começaram antes do 25 de Abril, alguns que estavam no estrangeiro, os que despontaram logo a seguir à revolução e vai marcar já a década seguinte, os anos 80.” São artistas que testemunham a consolidação do sistema da arte com o aparecimento de museus de arte contemporânea, como o CAM, e galerias que experimentaram uma internacionalização, com Julião Sarmento ou Pedro Cabrita Reis. Por fim, uma terceira geração de artistas “cujo trabalho mostra que só em Democracia e em Liberdade cada um pode explorar a sua individualidade e trabalhar de forma aberta”, como Inês Botelho ou Gabriel Abrantes, cujas obras, respetivamente, abrem e fecham esta exposição.
Nesta mostra estão ainda trabalhos de Jorge Molder; Álvaro Lapa, Ana Jotta, Fernando Calhau, António Palolo, Jorge Queioz, Xana, Susanne Themlitz, António Dacosta, Rui Chafes ou Ana Vieira, da qual podemos ver a espantosa Piquenique, uma projeção de vídeo da obra-escândalo de Manet, Dejeuner sur L’herbe, na qual surgem duas mulheres nuas e sobre a qual a artista portuguesa vai colocar objetos do quotidiano, num estranho jogo entre o bi e o tridimendional, entre uma obra seminal do Impressionismo e a dessacralização da sua projeção no chão, coberta por artefactos banais. É um dos momentos altos desta mostra.
A obra mais recente pertence a Pedro Cabrita Reis e foi uma encomenda do MAAT. A pintura representa o mito de Prometeu, o atlas que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. O fogo, esse gesto fundamental da história humana, que depois se metamorfoseou em eletricidade, em tecnologia, mas também como símbolo da vontade humana, aquela que ateia chamas mas também faz revoluções e arte.
Liberdade, arqueologia, energia
Em simultâneo com Hoje Soube-me a Pouco, o MAAT inaugura mais duas exibições. Energia. Perpétuo Movimento mostra uma muito apelativa interação entre o Museu Nacional de Arqueologia e o Museus da Fundação EDP. Centrada na relação entre os elementos o fogo, a água, o vento e a produção de energia, traça um percurso de milhares de anos entre as pedras usadas para fazer fogo no Paleolítico Superior, até ao motor criado por Tesla. Pelo meio, podem ver-se painéis de azulejos romanos, estatuetas, leis escritas na pedra ou no bronze, enquanto se vai percorrendo o acervo do museus da eletricidade, como os seus fornos, ferramentas, bigornas. Esta mostra, que decorre na ala mais antiga do museu, está patente até 7 de outubro.
No MAAT Gallery está também o projeto Três Moscas, que junta os artistas André Maranha, Francisco Tropa, Jorge Queiroz e Pedro Morais e é uma instalação que inclui esculturas, pinturas, motores, espelhos, luz e integra um retábulo dos Bonecos de Santo Aleixo, marionetas de matriz popular alentejana e que serviam para contar histórias da tradição oral. Ao longo da exposição um grupo de atores do CENDREV fará, neste espaço, cinco récitas do espetáculo Auto da Criação do Mundo. Até 1 de junho.