No dia 12 de Junho de 1898, Sophia Tolstoi escrevia no seu diário:
“Hoje estava a pensar porque é que não há mulheres escritoras, artistas ou compositoras geniais. É porque todas as paixões e capacidades de uma mulher com energia são consumidas pela família, amor e marido – e especialmente pelos filhos. Não se desenvolvem outras capacidades, permanecem embrionárias e atrofiam. Quando uma mulher acaba de gerar e educar os filhos, acordam as necessidades artísticas, mas depois já é demasiado tarde e é impossível desenvolver o que quer que seja.”
Este sentimento de frustração e impotência perante o seu destino terá sido pensado, sentido, poucas vezes dito e raras vezes escrito e nunca publicado pelas mulheres ao longo dos séculos. Ao escolher contar a história de uma família “infeliz à sua maneira”, a partir dos diários de Sophia Tolstoi e das cartas que Lev lhe escreveu, Frederick Wiseman mostra mais uma vez que é um mestre a compreender e a filmar o espírito do tempo.
Um Casal é a primeira incursão na ficção do documentarista que reinventou o lugar do espectador de cinema, filmando um mundo dominado pela biopolítica. E só por isso este filme já seria uma sensação, mas Wiseman vai mais longe e desafia-nos a ouvir as palavras das mulheres que a História guardou nos arquivos do silêncio. O filme estreia-se esta quinta-feira, 9 de maio, em Portugal, dois anos depois da apresentação em Veneza.
[o trailer de “Um Casal”:]
Uma pequena obra-prima onde a natureza no seu esplendor de cores, texturas, perenidade acolhe uma mulher que, depois de devotar a vida ao seu marido genial, descobre que envelheceu e não se cumpriu. E o seu aparente monólogo com a paisagem é afinal um diálogo com o fantasma de Tolstoi que pressentimos no fora de campo. Uma dramatização subtilíssima entre as palavras dos diários de Sophia Behrs e de algumas das cartas que Tolstoi lhe escreveu, algo que só uma grande atriz poderia manejar e Nathalie Boutefeu é essa atriz. No seu rosto, no penteado austero, no vestido negro com um intenso mar azul em fundo ressoam Penélope a tecer e a destecer o manto enquanto espera Ulisses, mas também aquelas que preteriram a família e, (talvez) por isso, tenham podido deixar uma obra, como Emily Dickinson ou as irmãs Brontë.
Até há duas dezenas de anos, Sophia Behrs era tida apenas como a mulher doentiamente ciumenta do grande escritor, filósofo e pedagogo russo Lev Tolstoi, autor da monumental obra Guerra e Paz, inventor da imortal Ana Karenina. Um aristocrata viciado em jogo, prostitutas, torturado com a ideia de pecado que, aos 34 anos, procura regenerar-se casando com a jovem de 18, filha do médico da corte. Atualmente, já existem três biografias, todas escritas por mulheres, os seus diários e novelas estão finalmente publicados e a sua existência afirma-se e sai da sombra do homem com quem foi casada durante 36 anos, do qual engravidou 13 vezes e que criou nove filhos. Pelo meio, copiou sete vezes o manuscrito de Guerra e Paz e outros, geria a propriedade Yasnaia Poliana, onde, entre outras coisas, havia uma escola para alfabetizar os camponeses fundada pelo próprio escritor.
Se Virginia Woolf escreveu que, para poderem criar, as mulheres precisavam de um quarto só seu, Sophia Tolstoi mostra que precisavam também de um tempo que fosse só seu. E esse será o grande ressentimento dela perante o marido que vemos emergir neste filme: ele, que a instigava a escrever diários e cartas, que talvez a tenha instigado a ler, a indagar, a duvidar e a querer, também ela, ser escritora, foi depois aquele que a deixou absolutamente só com todos os encargos da vida familiar, com a sua instabilidade emocional, a sua dedicação à escrita, a sua indiferença para com os filhos, a vida familiar e, sobretudo, sem nunca perceber os vastos mundos interiores da sua mulher.
Wiseman considera este filme a sua “primeira obra de ficção”, mas, à semelhança do que faz nos documentários, recolhe fragmentos da realidade com os quais constrói os factos. É depois, na mesa de montagem, que tudo se joga. Ele tem sempre muito presente que a montagem, mais do que a filmagem, é marcada e deturpada pelo olhar do cineasta e, portanto, tem de ser o mais ética possível. Com Um Casal, o realizador troca a sua habitual perseguição da verdade, por uma tentativa de tocar o sublime, pela forma como filma a paisagem e a natureza primaveril da Belle-Isle, na costa da Bretanha. E, embora confesse, que não considera Tolstoi “um grande escritor”, que está mais interessado em Sophia, em dar a ver a sua força erguendo-se a partir de uma grande serenidade, Wiseman dá a ver as contradições, os desencontros, mas também o amor, a admiração e a perversidade de ambos. Um inferno particular que só terminou com a morte de Lev, em 1910, na estação de Astapovo, numa tentativa de fugir da mulher e partir para o Cáucaso na companhia de Alexandra, a filha dileta.
A escolha dos fragmentos e o entrelaçamento entre as palavras de Sophia e Lev foi feita em conjunto com a atriz Nathalie Boutefeu, com quem já tinha trabalhado na peça que encenou, sobre a poeta americana Emily Dickinson, A Bela de Amherst. Este não é, pois, um filme de ação, de mistérios, de suspense, é um filme feito de palavras e das imagens que elas criam e das imagens que através delas ecoam. Sophia confessa que pensa em suicidar-se para se vingar de Lev, ele escreve-lhe: “O ar fica contaminado onde quer que estejas”. Esta relação imprevisível está retratada no breve romance Sonata a Kreutzer e na inquietante e inesquecível frase que abre o romance Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. O grande mistério aqui é o Amor nas suas mais surpreendentes formas.
Um Casal é também um filme devedor da paixão de Wiseman pelo teatro, uma atividade paralela ao cinema documental, onde ele encenou autores como Beckett, Pirandello, entre outros. Mas também, neste filme, aparentemente simples, podemos rastrear algumas das características que fizeram dele “um mestre” do cinema documental: a exploração do “corpo-invisivel”, a forma como abre espaço ao “não dito”, que empurra o público para uma realidade complexa. O seu cinema é considerado um ato de resistência contra a industrialização do visível, feita pelos filmes de entretenimento.
Ao dar tão grande espaço à natureza, ao ponto de ela ser quase uma outra personagem, Wiseman, acaba por ir ao encontro de uma das ideias que atravessa toda a obra de Tolstoi, incluindo a religião, de cariz panteísta, que ele fundou: a convicção que a Natureza está antes e depois de tudo e face a ela cada drama humano é apenas um instante transitório.
As obras de Lev Tolstoi, traduzidas diretamente do russo estão publicadas na Relógio D’ Água e na Presença. Em 2011, a extinta editora Civilização publicou “Sofia Tolstoi:Uma Biografia”, da autoria de Alexandra Popoff.