— “Queres que tiremos as câmaras daqui agora? Ou estás bem?”, pergunta o terapeuta.
— “Estou bem”, responde Céline Dion.
Estamos mergulhados na cena mais dura do novo documentário da Prime Video, I Am: Céline Dion — que se estreia esta terça-feira, 25 de junho —, com a cantora ainda imóvel, deitada em cima de uma maca, após sofrer uma convulsão causada pela doença que a limita e que é agora pública, Síndrome da Pessoa Rígida (SPR).
Durante cerca de dez minutos, com a câmara sempre a filmar, vemos a canadiana a ter um espasmo, depois outro, seguindo-se uma convulsão que a transforma numa estátua, com o corpo rígido e os dedos contraídos em forma de garra, a boca de lado e os olhos a pedirem socorro enquanto lhe escorrem lágrimas pela cara e se ouvem os gemidos dela, a única forma que tem de comunicar.
Se era preciso assistirmos a uma cena tão explícita? Na verdade, era. Só assim conseguimos ter um pouco da perceção do que é conviver com esta doença neurológica, cujos sintomas mais comuns são a rigidez e os espasmos musculares — tão fortes e incapacitantes que podem causar fraturas, tal como já aconteceu a Dion, que partiu várias costelas.
[o trailer de “I Am: Céline Dion”:]
Imaginemos o que é ter esta síndrome e sermos confrontados com as nossas imagens naquele momento. Agora imaginemos ainda decidir partilhá-las com o mundo inteiro. É de uma coragem fora do comum e só prova que a artista fala a sério quando a dada altura do documentário diz: “Não posso mentir mais”. Para Céline Dion, mais importante do que tudo, é a dívida que considera ter perante o público, a quem deve explicações.
I Am: Céline Dion foi filmado durante cerca de um ano e, quando o projeto começou, a realizadora Irene Taylor — nomeada para um Óscar com a curta-metragem The Final Inch — não sabia o que ia encontrar. A ideia era contar a história de uma estrela mundial, com mais de 40 anos de carreira. Só que, em 2021, a cantora canadiana cancelou uma residência em Las Vegas, EUA, e os motivos seriam revelados em dezembro do ano seguinte. O choque de ter uma doença rara que afeta uma pessoa num milhão teve de ser digerido em privado antes de ser anunciado publicamente. Os sintomas tinham começado quase 20 anos antes com espasmos vocais, embora nessa altura ninguém suspeitasse que fosse SPR.
Em muitas atuações, incapaz de atingir as notas agudas a que estava habituada, arranjou formas de fazer batota para que o público não percebesse e tomou doses astronómicas de Valium para aguentar as dores. Até não conseguir mais, até quase deixar de caminhar. Fechou-se em casa e é assim que a vemos nas imagens do presente que intercalam com vídeos de arquivo de atuações estrondosas: o silêncio versus o caos, a solidão versus a multidão, a agonia versus a energia inesgotável.
Segundo a realizadora, o único pedido que Céline Dion fez para o documentário foi não haver terceiros a falarem por ela. Esse é também um dos trunfos de I Am: Céline Dion. Só assim percebemos porque é tão duro para alguém que editou 27 discos, vendeu 250 milhões de cópias, venceu um Óscar e cinco Grammys e trabalhou durante mais de 40 anos, aceitar o que lhe está a acontecer. Mais difícil do que lidar com o diagnóstico, é sentir que está a falhar aos fãs.
“A música, tenho muitas saudades. Mas as pessoas também. Sinto a falta delas, sabem?”, diz entre lágrimas. É para elas que quer voltar e vemo-la determinada na fisioterapia, às voltas com a medicação ou num regresso ao estúdio que lhe exige um esforço sobre-humano. Repete tentativa após tentativa, pede desculpa vezes sem conta, volta no dia seguinte, tenta de novo. Ironicamente, o que a leva a ter a convulsão tão severa que é registada pelas câmaras — e que leva a equipa de terapeutas à volta dela a ponderar chamar uma ambulância — é o facto de ter sido demasiado estimulada. O cérebro dela registou um êxtase tão grande que o corpo entrou em colapso. E o que será de Céline Dion se não puder cantar mais? A questão ocupa-lhe a cabeça a toda a hora e a própria diz que foi a voz que a conduziu a vida inteira. Sem isso, não há mais nada.
Dos tempos gloriosos restam as imagens de arquivo e uma visita ao armazém onde estão guardados os fatos de lantejoulas, os vestidos volumosos, os sapatos de salto agulha e os desenhos dos filhos. Aos 56 anos, a Céline Dion que se revela perante as câmaras do documentário não usa maquilhagem nem saltos, tem o cabelo sempre apanhado e puxado para trás. Mais do que isso, é profundamente sincera, resiliente e determinada e, apesar das lágrimas, nunca mostra ter pena dela própria.
“Se não puder correr, vou andar. Se não puder andar, vou rastejar. Mas não vou parar”, garante.
Ao longo de todo o documentário vemo-la a cantarolar constantemente — em francês ou inglês, com os filhos, com os cães, com o terapeuta — e de uma forma que parece ser tão natural quanto respirar.
Quando recupera, aos poucos, da crise que a deixou completamente paralisada, o terapeuta físico coloca a tocar a música daquele dia, uma espécie de ritual que têm no final das sessões. Who I Am, de Wyn Starks, transforma Céline Dion em poucos segundos. Começa a acompanhar a canção, ganha confiança, faz gestos, sente a melodia de olhos fechados. Perante isto, e toda a jornada que tem pela frente, nós que estamos deste lado, sendo ou não fãs de My Heart Will Go On e The Power of Love, só podemos torcer para que corte a meta, não a rastejar, mas a fazer o sprint de uma vida.