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Emir Kusturica e "Underground": era uma vez uma obra de arte

Regressa às salas numa cópia restaurada em 4K. Quase 30 anos depois, os nossos olhos estão mais cruéis, Kusturica apagou-se e a Jugoslávia não voltou. Mas está por vir quem filme outra guerra assim.

Embaladas pela música irresistível de Goran Bregovic, as quase três horas de filme que hoje regressam às salas de cinema continuam a merecer quase todos os minutos da nossa atenção
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Embaladas pela música irresistível de Goran Bregovic, as quase três horas de filme que hoje regressam às salas de cinema continuam a merecer quase todos os minutos da nossa atenção

Embaladas pela música irresistível de Goran Bregovic, as quase três horas de filme que hoje regressam às salas de cinema continuam a merecer quase todos os minutos da nossa atenção

Provavelmente, nem o cinema é justo com a História nem a História justa com o cinema; ver Underground – Era Uma Vez Um País em 2024 é muito diferente de vê-lo em 1995 – e não estamos a falar do restauro 4K. No filme, entramos num abrigo subterrâneo em 1941, durante o bombardeamento alemão a Belgrado na II Guerra Mundial, e saímos em 1992, durante a guerra civil que levaria ao colapso da Jugoslávia. É fácil imaginar, portanto, que voltávamos para dentro daquela grande cave alucinada e fascinante e que só saímos agora: o que veríamos? Num mundo em que há muito assentou o pó da guerra nas Balcãs e ficou claro o papel dos líderes sérvios nos conflitos contra croatas, bósnios e kosovares. Um mundo onde já é difícil aceitar personagens masculinas tão delirantemente másculas e personagens femininas tão confrangedoramente reduzidas a donzelas gritadoras. Um mundo onde vimos os filmes posteriores de Kusturica e como se tornaram uma dececionante imitação de si mesmo.

Mas voltemos lá atrás. Não é preciso ir à Belgrado de 1941; basta a Sarajevo de 1954. Foi então, nesse lugar tão sensível para toda a História do século XX, que nasceu Emir Kusturica, um nome que denuncia a influência muçulmana numa cidade que é, hoje, capital da Bósnia; o homem, no entanto, tinha origens sérvias – as mesmas que reclamaria já em 2005, quando se batizou na igreja ortodoxa com um novo nome, agora sérvio: Nemanja. Em 1978, formou-se na reputada escola de Praga. Em 1981, a sua primeira longa-metragem, Lembras-te de Dory Bell?, valeu-lhe logo o Leão de Prata para melhor primeira obra, em Veneza; a segunda, O Pai Foi em Viagem de Negócios, a primeira Palma de Ouro, em 1985. O terceiro filme, O Tempo dos Ciganos, sai três anos depois e volta a ser premiado em Cannes, desta vez para melhor realização.

O quarto, e primeiro falado em inglês, Arizona Dream, vem de Berlim com o Urso de Prata. O quinto é Underground e faz Kusturica entrar para o muito restrito clube de realizadores distinguidos com duas Palmas de Ouro. Tinha 41 anos e parecia não saber não fazer grandes filmes; aliás, parecia fazer ainda melhor de cada vez que se sentava atrás de uma câmara. Quem diria que, depois disso, já só faria Gato Preto, Gato Branco e pouco mais que interesse, além de se exilar na música, com a sua No Smoking Orchestra, e receber uns prémios carreira em lugares tão estranhos como Moscovo e Lisboa?

[o trailer de “Underground”, de Emir Kusturica:]

Underground, já se disse, foi um sucesso – mas também foi uma polémica. Ganhou o Festival de Cannes, sim, mas pouco mais. Não conseguiu sequer a nomeação ao Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira que O Pai Foi em Viagem de Negócios alcançara, dez anos antes, quando autor era muito menos conhecido. O motivo não oficial? Provavelmente a acusação que muitos críticos tinham feito mundo fora: Underground era propaganda. A versão sérvia da História, nostálgica de uma Jugoslávia unida, sob o poder de Belgrado.

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Regressemos então agora ao subterrâneo onde Marko (Predrag Manojlovic, o ator-fétiche de Kusturica), Blacky (Lazar Ristovski), Natalija (Mirjana Jokovic) e companheiros começam por se acoitar da invasão nazi e acabam a permanecer por meio século, a fabricar armas que Marko e Natalija vendem e que os tornam ricos e influentes, enquanto convencem os amigos de que a guerra nunca terminou e que Tito continua à espera da hora certa para os chamar ao combate e de volta à superfície.

É impossível não notar como os heróis comunistas de Kusturica são uma espécie de sobre-humanos, ou de gauleses com a poção mágica de Astérix, que comem, bebem, envolvem-se em muita cena de pancadaria com muitos homens, fazem amor com muitas mulheres, disparam muitos tiros e sobrevivem a muitas garrafas partidas na cabeça, electrochoques e até a bombas. E que os aliados são tratados com a dignidade reservada aos nazis (“quando não estamos a ser bombardeados por uns, estamos a ser bombardeados por outros”, diz uma personagem), ou até menos, já que, para os nazis, personificados na figura do oficial Franz, por quem Natalija tem um fraquinho, até é dispensada alguma simpatia.

É impossível não notar como o mesmo tratamento é dado, no final do filme, aos capacetes azuis da ONU, caricaturados como corruptos e metidos no mesmo saco de “filhos da puta fascistas” para onde Blacky atira todos os que não defendam a ideia de uma Jugoslávia unida. É impossível não notar que croatas e bósnios ali contam pouco ou nada, ou que, logo no início do filme, Marko até diz para alguém de nome Moustafa que “é preciso limpar Belgrado” de gajos como ele.

"Underground" é, provavelmente, propaganda – mas é também um grande filme. É possível ser as duas coisas ao mesmo tempo

Mas também é impossível não notar como pouca gente sai incólume deste filme. Como o herói comunista enganou e usou os próprios amigos. Como nem o próprio cinema, em particular, a figura do realizador, escapa ao gozo imenso com que Kusturica deita as mãos e afunda os pés na História.

Sim, para os filmes de Kusturica deve ir-se de botas de cano – pelo menos, para os que valem a pena. Vamo-nos sujar. Na lama, na luta, na dança, na poeira das explosões, na saliva e no suor dos corpos, dos animais, dos imparáveis instrumentos de sopro. Underground foi em 1995 e continua a ser o magnum opus de um cineasta genial, certamente felliniano, mas com uma coragem ou uma loucura de outra ordem, sem filtro nem verniz. Embaladas pela música irresistível de Goran Bregovic (uma das quais, Ausência, um bonito tango cantado por Cesária Évora), as quase três horas de filme que hoje regressam às salas de cinema continuam a merecer quase todos os minutos da nossa atenção.

Porque a verdade, é que, muito poucas vezes antes e ainda menos depois, se viu um cineasta conseguir uma proeza assim: um filme que é, simultaneamente, uma tragicomédia, um musical, uma farsa e um épico de guerra. Veja-se quando Blacky traz à superfície o filho adulto que viveu toda a vida no bunker e não sabe o que é a Lua, nem o Sol, nem um peixe. Veja-ae aquela cadeira de rodas a arder, demoniacamente, em torno do Cristo tombado, pendurado pelos pés, na cruz bombardeada. Veja-se, no fim de toda aquela loucura, que incluiu um macaco aos comandos de um tanque, durante um casamento numa cave, a dramática sentença final: “Uma guerra não é uma guerra até que um irmão mate um irmão”.

Sim, Underground é, provavelmente, propaganda – mas é também um grande filme. É possível ser as duas coisas ao mesmo tempo. “A arte é uma mentira”, diz Marko, perante uma Natalija cada vez mais desgraçada pelo remorso. Que nos faz perceber a verdade, completaria Picasso.

 
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