Alguma coisa tinha de ser feita com Cidade de Deus. Facto adquirido deste século é o de que não se consegue deixar algo estacionado. Se foi um sucesso, é um fenómeno de culto ou se é algo adormecido com capacidade para despertar com uma nova visão para a contemporaneidade, então é garantido de que irá ser reanimado. Há sempre a desculpa de uma nova audiência, mas a grande razão continua a ser o alimentar de uma grande fatia do público que não sabe crescer, que está fixado em conhecer o novo através de uma constante revisitação do velho. A palavra nostalgia é chave — conforto e segurança são outras que surgem rapidamente coladas aqui.

Os exemplos abundam e por vezes só precisamos de recuar umas semanas. Alien: Romulus vem com o tal rótulo “para uma nova audiência”, num misto de vontade de reintegrar o franchise na atualidade, encapuçado com a ideia de uma nova história. Para isso, vai-se buscar alguém que já fez isso bem, Fede Álvarez – Evil Dead -, e o bem não é tanto as duas ideias da frase anterior, mas outra coisa: criar o novo a partir de soluções do velho. Há criatividade e talento nisto, claro, por isso é que há tantas coisas más e mal feitas, ou que apenas falham o propósito. Mas “a nova audiência” é uma mentira, o que se quer é beber do conformismo de um – agora – acumular de gerações que prefere reabilitar a memória de quando era um consumidor exigente e curioso. É assim com todo o entretenimento.

© Max

Cidade de Deus já se tentou celebrar de várias formas, seja com uma série de televisão – o spinoff de 2007 Cidade dos Homens, ainda com mão ativa de Fernando Meirelles – ou o documentário Cidade de Deus: 10 Anos Depois. Cidade de Deus: A Luta Não Para (Fernando Meirelles é só produtor) é mais um exemplo do passado a assombrar-nos. O filme estreou há pouco mais de duas décadas e, estes seis episódios, cujo primeiro já está disponível na Max, acontecem também duas décadas depois dos acontecimentos do filme. É a Cidade de Deus já no século XXI, curiosamente, mais ou menos na altura temporal em que o filme estreou. Se houver vontade de ser muito chatinho, é como se a minissérie estivesse também a querer situar o Rio de Janeiro que existia aquando da estreia do filme, puxando mais galões à memória.

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Contudo, não vale a pena ir por aí. Talvez responder a questões essenciais. Como: vale a pena ver Cidade de Deus: A Luta Não Para? Vale mais a pena rever Cidade de Deus, o original, até por uma questão de economia: os seus 130 minutos são mais eficazes do que as quase seis horas da minissérie. Eis o problema, apesar da projeção central ser bem elaborada e confiar – corretamente – que os espectadores querem saber como algumas daquelas personagens foram imaginadas para uma realidade vinte anos depois, essa realidade não é uma nova realidade, mas um regurgitar de uma nova linha temporal para fazer exatamente as mesmas coisas.

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Os alertas surgem logo quando ouvimos Buscapé (Alexandre Rodrigues) a tatear clichés: saiu da favela mas a favela não saiu dele. É a linha que serve para justificar tudo o que se fica a saber dele agora e dos vinte anos que passaram. Buscapé tornou-se fotojornalista, em parte graças a algo que aconteceu na génese de tudo: uma foto que tirou em Cidade de Deus, o filme. Essa foto foi a razão para ser visto, para ter uma porta de saída da Cidade de Deus e conhecer o mundo. Mas, tal como um boneco de si mesmo, Buscapé ficou preso num mesmo cenário, é um fotojornalista especializado nas favelas, porque conhece os seus meandros, como funciona e dá-se com as pessoas. No fundo, é um especialista.

Um que serve para criarmos empatia com esta Cidade de Deus vinte anos depois, que serve para ver que Buscapé ainda vai a casa da mãe comer, que a sua filha vive com ela, e que algumas das personagens e amigos de Buscapé levaram a sério as lições de vida do filme e moldaram a vida com causas nobres para tornar a Cidade de Deus num melhor sítio para os seus. O primeiro episódio alimenta-se muito disto, uma ideia aspiracional em volta de algumas personagens das quais a audiência ainda se recordará e da vontade de fazer positivo na comunidade e tudo mais. Quem não nutre um certo carinho por estas coisas?

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O primeiro episódio mete as coisas para a frente num aborrecido exercício de constante celebração do passado. É um resumo premium de Cidade de Deus e que prepara para o que vem a seguir: mais do mesmo. Basicamente, Valdemar Bradock (Thiago Martins) sai da prisão e sente-se rejeitado pelo seu padrinho, Curió (Marcos Palmeira), manda-chuva do presente. Por rejeitado entenda-se, não lhe arranja um trabalho, algo vistoso para voltar à vida antiga e recomeçar a sua vida. Sente-se puxado para fora da família. Sem meias medidas – e em tempo recorde -, começa a explorar fraquezas de rivais, reativar contactos de fornecedores de armas e instigar um certo mal-estar local para dar início a uma guerra civil na Cidade de Deus.

Esta ideia deste estado permanente é então — mais uma vez — o núcleo de Cidade de Deus, a minissérie. Alimentando-se – e alimentando a audiência – das ideias de sempre, de que a maior parte das pessoas que vivem na Cidade de Deus são pessoas boas, com vidas normais, constantemente sujeitas às vontades de uns grupos de criminosos com uma inesgotável sede territorial. Mais do mesmo, que não ignora como se deve contar uma história destas em 2024 (mais personagens femininas, mais sabor político, mais funk), mas que não deixa de ser mais do mesmo. Previsível.