Só mesmo Tim Burton se lembraria de filmar um casamento (à força) entre um morto e uma viva ao som de MacArthur Park, de Richard Harris, dobrada por todos os participantes e tocada por uma orquestra de defuntos, na presença de um enorme bolo de noivado que escorre lodo verde; só mesmo Tim Burton para dar a Monica Bellucci (a sua actual namorada) o papel de uma sugadora de almas que foi morta à machadada e desmembrada, e que se reconstitui graças a uma pistola de agrafos, acompanhada por Tragedy, dos Bee Gees; e só mesmo Tim Burton para chamar Soul Train ao comboio que leva as almas dos mortos aos seus respetivos destinos, enquanto dançam ao som de música soul/disco (incluindo uma versão muito mexida da citada MacArthur Park, desta feita por Donna Summer).

Estes são alguns dos momentos fortes de comédia lúgubre e desaparafusada de Beetlejuice Beetlejuice, a continuação de Os Fantasmas Divertem-se (1988), a segunda longa-metragem de Burton. E mais de 30 anos depois, tal e qual como acontece no mundo dos vivos, o atendimento na repartição da função pública do Além encarregue de receber, registar e orientar quem se finou, não melhorou nada e continua a ser um colossal atraso de vida. Apenas um guichet aberto com uma funcionária lenta e malcriada a atender, senhas com números quilométricos, fila de utentes parada, pouco espaço sentado e tempo de espera indeterminado. A burocracia é exatamente a mesma, deste lado ou do outro.

[Veja o trailer de “Beetlejuice Beetlejuice”:]

Em Beetlejuice Beetlejuice, Lydia Deetz (Winona Ryder) é agora uma famosa e rica médium que tem um popular programa de televisão, Casa Assombrada, sobre fenómenos paranormais, e namora com o seu agente, Rory (Justin Theroux), um oportunista que não pára de babujar banalidades New Age e tolices woke. Quando o pai morre comido por um tubarão após um desastre de avião, Lydia, a sua filha Astrid (Jenna Ortega), uma adolescente rebelde, cética e ambientalista radical, e a avó, Delia (Catherine O’Hara), uma histérica e ridícula artista multimédia e conceptual, têm que voltar à casa da bucólica Winter River, onde se deram os acontecimentos do primeiro filme, para assistirem ao funeral. E o Halloween está mesmo à porta.

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[Veja uma entrevista com Tim Burton, Michael Keaton e Jenna Ortega:]

Entretanto, Lydia está a ter perturbantes visões com Beetlejuice (Michael Keaton). Este nunca deixou de suspirar por ela, está à frente de uma empresa de bioexorcismos, tendo como funcionários Bob, o explorador a quem os caçadores de cabeças sul-americanos encolheram a cabeça na fita original, e um punhado de outros como ele, que explora descaradamente, e anda a fugir de Delores, a citada sugadora de almas e sua defunta mulher, que ele cortou aos bocadinhos depois dela o ter tentado envenenar, episódio macabro que é contado num flashback a preto e branco e falado em italiano, em que Tim Burton aproveita para homenagear Mario Bava.

[Veja uma entrevista com Winona Ryder:]

Dizer mais sobre a trama de Beetlejuice Beetlejuice é inútil e só irá estragar o prazer do espectador. Era impossível que o filme fosse tão bom como o original, mas o realizador não deixa os seus pergaminhos de mestre do fantástico gótico-poético-gozão por mãos alheias. Fiel ao espírito (e aos espíritos) de Os Fantasmas Divertem-se, bem como à sua lógica narrativa e aos efeitos especiais clássicos e artesanais (aqui, a animação stop motion e os animatronics predominam sobre o digital), Burton aciona a sua inconfundível modalidade de comédia que harmoniza humor muito negro, slapstick anárquico, gore gozão, sátira certeira (nem a Disney nem os influencers escapam) e piscadelas de olho ao género (além de Bava, também O Monstro Está Vivo, de Larry Cohen, merece uma chapelada).

[Veja uma entrevista com Monica Bellucci:]

Danny DeVito aparece brevemente num zelador do Além que bebe lixívia como se fosse vinho de pacote; Willem Dafoe faz Wolf Jackson, um ator canastrão de policiais de acção série B promovido a detetive particular e chefe da segurança do outro mundo, e que continua a ser tão mau actor morto como quando estava vivo; Arthur Conti interpreta o interesse romântico de Astrid que lhe esconde um segredo; e Michael Keaton continua imperialmente repugnante, chaga e vigarista, e politicamente incorreto, num Beetlejuice que volta a ter as melhores tiradas, à-partes e trocadilhos do argumento. E que, quando diz que vai dar o seu coração a Lydia, cumpre à letra. Enquanto comédia deste mundo e do outro, Beetlejuice Beetlejuice satisfaz simultaneamente com a solidez de um jazigo de família e a folia de uma festa retro/disco a decorrer lá dentro.