Não há despedidas fáceis e quem viu A Amiga Genial até aqui já podia adivinhar que esta ia doer. Ninguém se liberta com ligeireza de uma série com personagens complexas e perfeitamente imperfeitas e que ainda por cima não deixa envergonhados os livros que lhe deram origem. Porém, após quatro temporadas — a última estreia-se na Max esta terça-feira, 10 de setembro —, a história imaginada por Elena Ferrante em quatro volumes consegue fechar o círculo de forma a deixar o espectador apaziguado e satisfeito com a volta que a história dá. O luto pelo fim de uma série é real, mas o vazio deixado por estas personagens e pelas buzinas infernais de Nápoles vai sendo ultrapassado ao recordarmos certas cenas, de uma beleza incomum, que fazem desta produção um dos tesouros maiores (e talvez mais subvalorizados?) da Max.
A quarta e última temporada replica a ação do quarto volume dos livros de Elena Ferrante, História da Menina Perdida. Este título é literal e figurativo de tantas formas que é difícil decidir qual a mais poderosa. A “menina perdida” remete diretamente para o arco narrativo de Lila (e para salvaguardar quem não leu os livros, não podemos ir mais além nesta questão), mas também para a inocência e a infância que se esfumam ao longo da vida das protagonistas desta história.
Estamos agora no final dos anos 70, mergulhando imediatamente e a pés juntos numa Itália dos anos 80 afogada num caos político e social. Lenù e Lila parecem estar em fases muito diferentes da vida (ou, percebe-se pelo caminho, talvez tenham mais parecenças do que pensam). A primeira acaba de largar o casamento para viver uma paixão arrebatadora com Nino (intelectual, mentor e um mentiroso compulsivo), enquanto aproveita aquela que parece ser a melhor etapa da sua carreira. Enquanto escritora (é também ela a narradora da série), o nome Elena Greco ganha cada vez mais destaque. O feminismo e a emancipação parecem ser bandeiras que lhe estão estampadas na cara. O bairro pobre e violento onde cresceu é uma memória distante. Até deixar de ser.
[o trailer da quarta e última temporada de “A Amiga Genial”:]
Nesse bairro continua Lila. Longe das palestras e dos saraus eruditos, é uma espécie de patroa do pedaço. Ninguém lhe faz frente, toda a gente lhe guarda respeito, até os mafiosos que podem continuar a mandar no bairro, exceto no metro quadrado pisado por ela.
De costas voltadas, aquelas que são melhores amigas (mas também o maior entrave ao percurso da outra) desde o primeiro minuto desta história, Lenù e Lila estão numa fase madura das respetivas vidas e ganham muito com a interpretação de novas atrizes nesta quarta temporada. Alba Rohrwacher é a primeira e Irene Maiorino a segunda, uma opção inteligente para fazer estas mulheres avançarem sem parecer estranho que continuassem a ser interpretadas pelas atrizes mais jovens das temporadas anteriores.
Lenù regressa a Nápoles e recupera as filhas — que no impasse da separação, acabaram entregues aos avós —, mudando-se para um apartamento com vista para o mar, um postal idílico e a prova viva de que conseguiu sair da miséria, ser bem sucedida e transformar-se em alguém respeitável, com uma carreira e uma educação muito diferentes da família. Porém, vive com um homem que a estimula intelectual e sexualmente, mas que ela sabe (embora escolha não ver até dada altura) que tem uma família principal que não faz grandes intenções de deixar. Onde estão o seu apoio e as suas referências, afinal? Em Lila e no bairro que renegou.
E é quando aceita esse facto e regressa aonde tudo começou que a temporada ganha fôlego (os quatro primeiros episódios são demorados, como se a própria Lenù precisasse desse tempo para ganhar coragem para voltar. Já Lila é um furacão — a filha que a mãe de Lenù não teve mas que parece que preferia, tantos são os elogios que lhe faz. No bairro interessa mais ter negócios bem sucedidos (não interessa se legais ou legítimos) do que ser uma escritora lida internacionalmente, isso não resolve os dramas e os perigos daquelas ruas. Continua intempestiva e imprevisível, mas é também a amiga fiel que estende uma rede por baixo de Lenù. Está sempre ali, paciente, à espera do momento em que seja preciso dar colo ou intervir.
A maternidade, as carreiras e as relações amorosas caminham lado a lado, misturam-se ou escolhem direções completamente diferentes para cada uma delas. Tudo se liga, de forma efusiva, e se separa, de forma irreparável, com uma crueza e uma beleza que esta versão de A Amiga Genial conseguiu manter desde a estreia. Elena Ferrante, ela própria uma figura desconhecida e enigmática, tem créditos como guionista e só podemos supor que tem um dedinho em cada cena, em cada diálogo, em cada plano fechado (e são muitos) nas personagens. Se a estética visual não é exatamente aquilo que imaginamos ao ler os livros, está lá muito perto.
Raiva, paixão, desgosto e luto, está aqui tudo, retratado numa amizade que por vezes é pura, outras é doentia e dependente e outras ainda pautada pela inveja de ter aquela vida ali ao lado, que parece tão mais perfeita e descomplicada do que a nossa. Certo é que é impossível escapar às origens ou aos traumas que deixamos para trás. Mais tarde ou mais cedo, é preciso lidar com tudo isso. Por vezes é necessário um terramoto (como o literal da história, que abala Nápoles) que confronta Lenù e Lila com um medo profundo e real para remexer coisas mais recalcadas e interiores, deixando as entranhas todas viradas ao contrário para, uma a uma e devagar, poderem ser postas no lugar.
O final de A Amiga Genial não é nenhuma surpresa, já que a história (no livro ou na série) começa exatamente pelo fim. Um dia, já com 60 e tal anos, Lenù recebe uma chamada do filho de Lila. Esta acaba de desaparecer, parecendo ser uma decisão intencional. O que só agora ficamos a conhecer são todas as paragens que ambas fizeram pelo caminho até aqui chegar. A última viagem é longa — são dez episódios, alguns com mais de uma hora —, mas a paisagem é intensa e “bellissima”, como diria a narradora.