Os tempos andam complicados para fazer comédia – há uma polícia da linguagem, censura, os wokes a tentarem cancelar as mentes mais brilhantes. Ou assim o dizem alguns humoristas, de Ricardo Araújo Pereira a Ricky Gervais, passando por Jerry Seinfled, e dizem-no nos seus programas de TV, nas suas crónicas na imprensa, nos seus programas de rádio, nos seus podcasts (ou nos podcasts para os quais são convidados), nos seus especiais da Netflix ou nos seus espectáculos esgotados em salas gigantes, ou mesmo nas entrevistas que continuam a dar com regularidade.
É verdade que há hoje maior discussão sobre linguagem, não apenas em relação ao humor, sendo que a maior parte destas discussões decorrem no Twitter. Uma visão redutora afirmaria que os wokes não gostam de piadas sobre violações, ficam ofendidos com quase todas as larachas que envolvam transexuais e, quando alguém cruza essas linhas vermelhas, fazem ouvir a sua voz; o outro lado, a que chamaremos anti-, considera que os wokes são uns ofendidinhos, que querem (como já mencionei) policiar a linguagem e cancelar os artistas que cometam o pecado de gozar com transexuais ou negros.
A tentação de sobre-simplificar qualquer problema é grande – e facilmente nos leva a acreditar que só há estas duas posturas, que são uma caricatura da multiplicidade sociológica do comentador de Twitter. Se olharmos para trás no tempo, notamos que sempre houve escândalos e estes tinham consequências; sempre houve gente a cair em desgraça. Talvez hoje o modus operandi seja diferente e passe pelas redes sociais, mas nada nisto é propriamente novo. Convém até lembrar que tipos como George Carlin viram a polícia interromper os seus espectáculos – a novidade será, talvez, que as pessoas que se ofendem e pedem cancelamentos são, também, de esquerda, em vez de serem pessoas conservadoras, de uma certa idade.
Apesar de tudo a vida não corre assim tão mal aos humoristas: Louis CK voltou a dar espectáculos e se as salas não são hoje tão grandes como as que costumava frequentar também é verdade que nem sempre o mundo leva a bem que um tipo obrigue mulheres (nomeadamente empregadas do próprio Louis CK) a assistir às suas masturbações. Jimmy Carr teve alguns problemas com a seguinte piada: “Quando as pessoas falam sobre o Holocausto, falam sobre a tragédia e o horror de seis milhões de vidas de judeus perdidas pela máquina de guerra nazista. Mas nunca mencionam os milhares de ciganos que foram mortos pelos nazis. Ninguém nunca quer falar sobre isso, porque ninguém quer falar sobre os aspetos positivos.” Ele apresentou a piada como sendo a pior que alguma vez fez, uma piada que o levaria a ser cancelado – e de facto viu alguns convites serem-lhe retirados. Mas já anda por aí em digressão outra vez.
Mas há muitos tipos de humoristas – alguns não perdem um segundo a reclamar com os wokes ou a ponderar sobre a existência de censura, simplesmente fazem o seu trabalho e não arredam pé do seu estilo um milímetro que seja. É o caso de Anthony Jeselnik, que se apresenta em Lisboa terça e quarta, dias 17 e 18, no Tivoli BBVA, às 20h. Jeselnik é, nesta era em que todos temos de estar a mostrar compulsivamente o quão empáticos somos, o oposto de empatia: quase não se mexe em palco, o seu ar é sempre de uma leve arrogância, como se estivesse acima do espectador (ou soubesse algo de que este não sabe), a sua entrega é sempre dead-pan (quase nenhum dos seus músculos de move quando debita uma punchline) e o mais certo é que a punchline seja razoavelmente chocante.
E no entanto, nunca ninguém quis cancelar Jeselnik – ele nunca esteve envolvido nessas conversas nem é dado como exemplo de algo censurável. A postura de Jeselnik é quase sempre amoral – ou mesmo de quem parece gozar com os excessos moralistas da maior parte das pessoas. Um exemplo de como ele opera, retirado de Thoughts and Prayers, o seu especial de comédia datado de 2015: “Sei muito bem que vou morrer. E a maior parte de nós não escolhe como morre. Mas se eu morrer porque alguém me assassina por causa das minhas piadas? [Pausa.] É o melhor cenário possível”.
[o trailer de “Thoughts and Prayers”:]
Thoughts and Prayers (que significa “pensamentos e orações”) é a expressão mais usada no mundo anglo-saxónico para mostrar empatia e preocupação com os outros quando alguma tragédia ocorre. Na realidade, é uma expressão tão usada que quase não se usa mais nenhuma. Há um garoto que mata 15 pessoas numa escola? Vai-se ao Twitter e escreve-se “Os meus thoughts and prayers estão com as famílias etc”. Um homem mata a mulher e os filhos? “Os meus toughts and prayers estão com a família etc”. Jeselnik dá a entender que de tão usada a expressão deixou de significar empatia, mas sim aquela hipocrisia moral que nos distingue enquanto humanos: fazemos o mínimo para fazer de conta que somos empáticos e seguimos com a vida.
A última piada de Thoughts and Prayers, que segue a piada citada anteriormente, diz assim: “Mas se alguém alguma vez ferir a minha família, ou alguém que me seja próximo, por causa de uma piada que eu fiz? [Pausa.] Ainda melhor [e sorri]”. Como é que ele se safa com isto? Como é que toda esta amoralidade leva o público às gargalhadas e não deixa as pessoas em polvorosa nas redes sociais.
Uma explicação possível é que apesar de abordar todos os temas e mais alguns (da masturbação à morte), Jeselnik sabe trabalhar as suas piadas ao limite: vemo-las como propositadamente ofensivas, vemo-lo como propositadamente arrogante, e por isso nunca confundimos humorista com pessoa e piada com opinião pessoal – sabemos que isto é um espectáculo, que ele está a testar os nossos limites, que cada punchline é o resultado de muito trabalho – e por isso não tomamos nada do que é dito pessoalmente, mesmo que por vezes fiquemos chocados com o que ouvimos. (E o humor de Jeselnik é feito propositadamente para chocar.)
O diálogo entre humor, humoristas e público mudou com as redes sociais. Antigamente só os tolinhos do humor estavam atentos ao que os humoristas faziam, só esses viam os specials de comédia – mas hoje em dia qualquer bit (qualquer rábula) aparece num vídeo de 21 segundos nas redes sociais e as pessoas, mesmo as pessoas que não têm o hábito de consumir comédia, têm uma opinião sobre o humorista, baseada no vídeo de 21 segundos. A comédia costumava ser uma conversa entre entendidos – agora é uma conversa entre todos, mesmo os que não conhecem os códigos de uma linguagem tão específica.
Isto não significa que as pessoas que gostam de comédia há muito tempo não se ofendam, não se choquem, e não ataquem certos comediantes – ofendem, chocam e atacam e há uma certa guerra de idades na comédia: os sub-35 não suportam o humor feito pelos 40+, não suportam a forma como usam pessoas trans como assunto, como fazem piadas sobre violações quando tantas pessoas trans e mulheres sofrem neste mundo.
Mas Jeselnik, que não foge a assunto nenhum, passa ao lado das grandes controvérsias. Em parte porque as suas piadas são, sobretudo, non-sequiturs – ao contrário de outros comediantes, ele não cria toda uma narrativa para cada espectáculo, de modo a que o espectador creia que a pessoa no palco e a que escreveu as piadas sejam a mesma pessoa e as piadas sejam a sua sincera expressão das suas opiniões. Não, ele faz uma piada sobre um assunto, choca-nos e passa para o próximo.
De certo modo, é como se ele tivesse educado a sua audiência: a esperarem sempre o pior possível a cada punchline e a não confundir a piada com a pessoa. O seu estatuto também ajuda: ele é suficientemente conhecido para fazer specials de comédia, mas não é tão grande que as pessoas nas redes percam tempo a esmiuçar os seus one-liners. Jesenlnik conduziu-se a um lugar onde pode dizer tudo o que quiser sem que no dia seguinte desmarquem a sua digressão. Ajuda que ele não perca um segundo a discutir o assunto wokes vs não- – ele faz o que faz, não pede desculpa e segue em frente.
A ironia é que por trás disto está um cuidado extremo com as palavras – no sentido de ser notório que tudo o que ele diz foi trabalhado até ao ínfimo pormenor. É isso que os melhores artistas fazem: deixam-nos assarapantados com o seu trabalho, mas discretamente lembram-nos que a arte é só uma forma de pôr coisas numa perspetiva diferente. Jeselnik é um mestre em fazer o nosso rabo mexer-se de desconforto na cadeira – antes da nossa boca desatar numa gargalhada da qual, possivelmente, nos envergonhamos.