“Era um homem lindo, carismático, charmoso, com uma curiosidade infinita sobre as pessoas. Ao contrário dos outros fotógrafos, William Klein não se distanciava do objeto, ele aproximava-se o mais possível, fazia conversa, tornava-se mais um elemento na multidão. Só essa espécie de intimidade explica o trabalho dele”, diz David Campany, enquanto andamos pelos corredores do MAAT, entre as imagens de grande e muito grande formato do pintor americano que, aos 16 anos, fugiu de casa e se foi esconder no MoMA, em Nova Iorque, e que acabaria por inventar uma nova forma de olhar o século XX através das suas fotografias ferozes.
Campany, foi convidado pelo MAAT para ser curador desta exposição, que é a maior, a nível europeu e mundial, desde a morte do fotógrafo, em 2022. A mostra, que abre esta quarta-feira, dia 18, ao público, reúne cerca de 150 obras de William Klein, que dão a ver a sua trajetória desde a pintura, como discípulo do modernista Fernand Léger, passando pelas primeiras experiências com a câmara escura, a fotografia de rua, que haveria de consagrá-lo, mas também os editoriais de moda para a Vogue americana e, por fim, o cinema. “No fim da vida ele regressou às leituras de Shakespeare”, conta o curador, que foi também colaborador e amigo de Klein. “Ele gostava especialmente desta peça, As you like it, e foi dela que retirei a frase que dá titulo à exposição — O Mundo Inteiro é um Palco — porque Klein, “soube como poucos captar esse lado performático da vida, essa ideia de que a realidade é sempre representação”.
Chris Marker, Fellini, Pasolini foram apenas alguns dos cineastas que o fotógrafo, que nasceu numa família de judeus ortodoxos pobres de Manhathan, impressionou, com as imagens que extraía das ruas de Nova Iorque, nunca como um voyeur à procura de uma fotografia limpa, geométrica, como Cartier Bresson, mas como um artista modernista, inspirado pelo abstracionismo, o design da Bauhaus, o cinema de Orson Welles e Fellini. Com Klein, as fotos tornam-se caóticas, ele inventa novas perspetivas utilizando ângulos mortos, recorrendo a espelhos, lentes grandes, prismas excêntricos, como uma arma apontada ao detalhe. Porque no detalhe adivinhamos o todo.
Klein testemunha a partir de dentro e isso dá uma dimensão incomodamente política ao seu trabalho. Ele fotografa os grupos marginalizados de Nova Iorque, de Roma, Tóquio, Moscovo, entra nas casas das famílias, partilha a condição dos desalinhados, é um frenético perseguidor dos acasos quotidianos, das histórias de vida mais radicais através das quais mostra uma compaixão que não busca a piedade, antes o respeito e a admiração.
Com uma das suas fotografias mais famosas, Gang1, Klein aponta a lente para o interior do cano de uma pistola empunhada por um adolescente, com o rosto distorcido pela cólera. É uma imagem que emana uma terrível mistura de poder e impotência, de brincadeira e de realidade, que brinca com a proximidade que existe entre uma objetiva e uma arma: ambas disparam. Klein vai fotografar muitas crianças americanas a empunharem armas de fogo, o que é, ainda hoje, a perceção de uma violência profunda da sociedade americana que ele, aliás, detestava. Mas por detrás de cada uma delas está apenas o desafio aos miúdos que encontrava na rua: “Agora faz de conta que és um vilão”.
Em 1948, o artista entra na Sorbonne, em Paris, com uma bolsa de estudo, para estudar pintura. É aluno de Fernand Léger, começa a fazer experiências com fotografia para criar imagens abstratas e chega a expor em Milão. Estas imagens chegam às mãos de Alexander Liberman, diretor da Vogue americana que o convidou para fazer um portfólio sobre Nova Iorque. A partir daqui, Klein, criará não só uma estética nova, suja, caótica, rejeitando toda a tradição da fotografia clássica, mas também da reportagem.
Tudo se joga nos detalhes, cada um daqueles rostos é um repositório de infinitas histórias. “Não sei como é que ele conseguia fazer isto, mas cada pessoa fotografada está a fazer algo diferente”, explica David Campany ante uma das imagens recolhidas em Tóquio, uma das cidades reimaginadas por Klein — ele que, como disse Pasolini, “fazia de cada cidade um filme do qual ele era o realizador”.
A suas visões de Nova Iorque deram origem ao livro Life is Good for You in New York, em 1956, mas a América não gostou de se ver retratada assim e o livro só vira a ter reconhecimento nos ano 80. Mas na Europa, especialmente em França, Klein foi logo premiado. O cineasta Chris Marker, na época editor da Seuil, quis publicar o livro, que chegou às mãos de Federico Fellini. Um telefonema entre Paris e Roma bastou para que o realizador italiano chamasse Klein para seu assistente no filme As Noites de Cabíria. Entre as filmagens fotografou as ruas de uma Roma onde, de novo ele capta o choque entre uma sociedade pobre e tradicional e a chegada da cultura do consumo, da publicidade, das crianças nas sua brincadeiras.
Klein fotografava sobretudo em preto e branco e foi nesses dois tons que fez uma primeira curta metragem, um dos trabalhos que pode agora ser visto no MAAT: as avenidas de Nova Iorque iluminadas por neons, paisagem invadida por frases comerciais, anúncios, símbolos de marcas. Sobre estas imagens, que fazem de Klein um dos pais da Pop Art, anos antes de Warhol ou Lichtenstein, o realizador Orson Welles comentou: “É o único filme que realmente precisava de ser a cores”.
Precisamente a cor, nos trabalhos de Klein, surgirá quando este começa a colaborar com a Vogue americana. A moda não lhe interessava, mas até ao final de 69 trabalhou muito nesta área e mais uma vez revolucionou-a, ao trazer as modelos para o meio dos transeuntes, a caminharem pelas ruas como se fossem pessoas comuns num dia de trabalho, acentuando o contraste entre as peças de roupa geométricas de Balenciaga ou Givenchy e as roupas comuns, mas acentuando, ao mesmo tempo o mundo afetado da moda e a rudeza dos outros. Este contraste torna-se quase operático na foto em que coloca duas modelos à porta de um restaurante e um empregado negro sentado na montra numa inversão, à época escandalosa. A Vogue cortou o empregado negro da foto e Klein tomou providências para que tal não voltasse a acontecer.
A aversão à moda como objeto de desejo, que ele ajudou a afirmar, é retratada no filme Who are you Polly Maggoo, de 1969, uma sátira acida que será o pronuúncio do seu afastamento da Vogue, concretizado pouco tempo depois. A partir dos anos 70, Klein passa a dedicar-se quase só ao cinema, faz vários documentários sobre figuras como Muhammad Ali ou Little Richard, sobre acontecimentos como a guerra do Vietname. No anos 80, acentua-se uma paixão pelo desporto que já existia, em especial o ténis e o futebol.
Quando morreu, em 2022, tinha conquistado uma lendária fama de arrogante e intratável, que David Campany desmente: “Era uma pessoa extremamente gentil, mesmo delicada, mas as pessoas mais radicais [como Godard] não gostam dos que são profundamente independentes. Muitos intelectuais nunca lhe perdoaram o trabalho com moda. Mas, naquela época ele era um homem que precisava de ganhar um ordenado para sobreviver e continuar a investir na sua arte”.
Em paralelo com esta exposição, o MAAT vai editar um livro dedicado ao fotografo e a Cinemateca fará, em janeiro de 2025, uma retrospetiva sobre a sua obra cinematográfica. William Klein — O Mundo Inteiro é um Palco fica patente até 3 de fevereiro de 2025.