Na gala de entrega de prémios de Cannes deste ano, Sean Baker, realizador da cena indie norte-americana com filmes como The Florida Project (2017), Tangerine (2015) ou Red Rocket (2021), entre troca de olhares com a sua produtora e mulher, Samantha Quan, começou ea acreditar que Anora poderia ganhar a Palma de Ouro. Era preciso fazer poker face para que, num dos festivais mais importantes do mundo, ninguém desse conta do que estava prestes a acontecer: Anora venceria, com o troféu a ser entregue pela presidente do júri deste ano, Greta Gerwing.
Assim que Sean Baker subiu ao palco para receber o prémio das mãos do realizador George Lucas, um dos homenageados deste ano, a realidade impôs-se. “A seguir a isso, não me lembro de mais nada”: foi assim, num registo simples, camisa desajeitada e enfiada nas calças, com parte do cabelo já a suar, que o cineasta partilhou um pouco sobre um ano que pode ser um dos mais importantes da sua carreira, para uma pequena audiência no centro cultural Tabakalera, no festival de San Sebastian, este sábado.
Sean Baker pode mesmo terminar a viagem do seu Anora — a história de uma prostituta que se enamora por um filho de um magnata russo — com um ou mais Óscares. Ou pelo menos assim garantem sites como o IndieWire nas suas habituais previsões. Mas a conversa deste fim de semana nem sequer chegou a tocar na mais importantes das noites de prémios para a indústria cinematográfica. Foi, sobretudo, uma partilha a propósito da procura do realizador pela beleza de quem persegue o sonho americano mas não consegue concretizá-lo. De como fazer cinema sobre pessoas que não costumam ir parar à grande tela no circuito comercial. Dos seus castings com não-atores. E de como as opiniões sobre os filmes podem arruinar relações. “Já terminei uma relação com uma namorada depois dela dizer mal do Dancer in the Dark [2000]”, confessou.
[o trailer do filme “Anora”, de Sean Baker, que se estreia em Portugal a 31 de outubro:]
Sean Baker começou na cena indie em 2012, com Scarlet, o filme que deu início ao seu universo de personagens invisíveis aos olhos da grande indústria do cinema dos Estados Unidos da América. Apesar de ter de prestar contas por trabalhar com orçamentos pequenos (ou, pelo menos, mais pequenos do que os dos grandes estúdios), ainda consegue ter controlo sobre o que faz, do início ao fim.
É também a partir de Scarlet que começa a ganhar interesse pelo mundo dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais — “eu gosto de sexo, mas os meus filmes são, sobretudo, sobre o trabalho destas pessoas” — e nos vai dando personagens que, mesmo vivendo à margem da sociedade, têm tantas ambições, obstáculos e desejos como o resto dos comuns dos mortais. “Vou atrás das histórias que me interessam. Talvez um dia faça um filme totalmente erótico, não sei. As minhas personagens dão bons underdogs, algo de que Hollywood não costuma gostar”.
Na verdade, este interesse pelas classes trabalhadoras mais desfavorecidas, pelos imigrantes ou pelos sem abrigo que vivem ao lado de um resort da Disney (Florida Project), começou com a curta-metragem Take Out, de 2004, com a qual Sean Baker quis contar a história de um imigrante asiático ilegal, trabalhador num restaurante em Nova Iorque, que tem de se manter à tona para pagar as dívidas. “Foi aí, de facto, que tudo começou”.
Portanto, mesmo depois da Palma de Ouro e no meio do buzz que está a ser criado à volta de Anora, que em breve vamos poder ver em Portugal — no Tribeca Festival no Beato, que decorre a 18 e 19 de outubro, ou em sala, com a estreia marcada para 31 de outubro –, não se espere que o nova-iorquino ceda na sua pretensão de continuar a captar a beleza dos invisíveis. Nem que esteja à espera de um convite para fazer um filme sobre super-heróis. A moderadora da conversa em San Sebastian bem queria que o realizador dissesse o que fará a seguir, mas a única resposta foi mesmo: “Não, não estou à espera que a Marvel me vá bater à porta”.
Se não vai ser preciso andar a criar efeitos especiais em estúdio, local para onde não se gosta de mandar, o que é certo é que Sean Baker gosta tanto de trabalhar com cenários reais que, por vezes, diz à mulher que talvez fosse bom mudarem-se para os sítios onde faz as rodagens. “Através dos diretores de fotografia, vamos à procura da beleza desses locais que não é óbvia à primeira vista. No Anora também quisemos fazer isso, ao mostrar um outro lado de Coney Island.”
Sem corrermos o risco de fazer spoilers, e como o filme já se estreou em Cannes, podemos dizer que a história de Anora acompanha uma trabalhadora sexual de luxo que se enamora por um filho de um oligarca russo, baseado no fascínio de Sean Baker por essa comunidade imigrante nos EUA. “Também aconteceu neste filme: conseguimos uma grande mansão e fomos explorando o que se podia fazer ali com a equipa e com os atores.” Ou seja, nem no guião estava de facto explícito o que ia acontecer.
É que Sean Baker não tem propriamente um método restrito de trabalhar. Sabe, que, por exemplo, na pós-produção pode rescrever o filme inteiro. No caso de Anora, ficou deslumbrado com Mikey Madison depois de a ver em Gritos (2022) e também em Era Uma Vez em Hollywood (2019). “Logo a seguir a ver um dos seus filmes no cinema, pedi para lhe ligarmos. E ainda só tinha a ideia de início e do fim para este filme”, contou na Tabakalera, revelando que depois levou seis meses a escrever o guião com três dos atores principais.
Essa é outra das características da sua carreira: não ser rígido no processo. Ao ponto de, hoje em dia, afirmar que o casting é a parte mais importante do seu trabalho, mas que não tem nenhum gosto especial em garantir grandes nomes de Hollywood. “Sim, o casting, neste momento, é a minha parte favorita. O único filme em que primeiro fiz o casting foi o Tangerine[filme que rodou com um iPhone] porque queria conhecer as histórias daquelas mulheres. Penso sempre em quem pode ser bom para o papel e não na lista principal de atores do meu país.” Na verdade, a única parte “mais comercial” do seu cinema é mesmo a banda sonora que, segundo o público de San Sebastian que já viu Anora, é uma das melhores partes. “Quando atinges um certo estatuto, já não podes implorar. Neste caso, comecei a usar uma data de músicas sem licença e sabia que já não podia implorar. Gosto de usar música comercial num filme não comercial, gosto dessa contradição”, disse.
Sendo um cinéfilo assumido, Sean Baker, que tem conta naquela que é provavelmente a mais popular das redes sociais dedicadas ao cinema — a Letterboxd — não podia deixar de responder à pergunta: quais são as suas referências? Antes, revelando mesmo ser uma espécie de geek da sétima arte, aceitou o desafio de um cinéfilo espanhol que perguntou porque é que o realizador usava a mesma fonte. “Descobri uma de que gosto, mas não é nova. Assim um bocadinho como o que fez o Woody Allen ou o John Carpenter”, disse. Mas desengane-se quem ache que o realizador gosta de prestar homenagem aos autores com quem cresceu quando andava a descobrir cinema internacional na Universidade de Nova Iorque. “Desde o filme Ata-me (1989), que se estreou quando andava na faculdade, a outros filmes que dei à equipa e aos atores, como French Connection (1971), do William Friedkin, o Nights of Cabiria (1957) do Fellini, ou o cinema do Jean-Luc Godard”.
E o cinema espanhol? Não podia sair de San Sebastian sem falar nele. “Claro, os filmes de Pedro Almodóvar. Acho que já viu o meu filme e gostou. Sinto que o seu trabalho deu-me permissão para ir a temas incómodos”, contou. Ambos gostam de quebrar tabus e mandar fora os estereótipos. “Não é divertido mandá-los fora? Temos de manter as pessoas connosco.”
Com mais ou menos sucesso, com mais Palmas de Ouro ou Óscares, Sean Baker deixou, pelo menos, uma certeza: não vai querer mudar. Gosta pouco de apregoar o que quer que seja a quem lhe vê os filmes ou escuta as palavras. “É aborrecido” — ponto final. E não se importa que a política que se descobre nos seus filmes, possa ser criticada, avaliada e até adorada pelos dois polos ideológicos nos EUA. “Aconteceu-me com o The Florida Project por causa da personagem da mãe. Havia quem a odiasse. Havia quem a adorasse. Ao ponto de pessoas ligadas ao projeto Democracy Now se desdobrarem em elogios bem como o Ben Shapiro [associado à alt-right norte-americana]. Tenho de permitir que outras visões entrem em choque com as que estão no filme. A política tem de ser aberta.”