Tem um vestido minúsculo que não parece bem um vestido, antes roupa interior, um vestido que não parece bem um vestido e é transparente, vemos de facto a roupa interior enquanto ela olha para trás para o espelho e não é certo se se trata de uma casa de banho de um clube de dança ou se está em casa, as botas dão a entender que saiu e foi dançar e sente-se suficientemente bem com o seu corpo para sair com roupa transparente.
Uma capa não é obrigatoriamente uma declaração de princípio sobre o que um disco representa, mas diz sempre alguma coisa – diz-nos que Nilüfer não teme a transparência e se olha ao espelho e esses são dois aspetos que definem My Method Actor, o terceiro disco desta inglesa filha de pai turco. My Method Actor olha para dentro, não tem medo de olhar para dentro e tem a sua dose de auto-reflexão, sem fugir dos temas duros que surgem quando nos questionamos sobre a nossa vida.
Nilüfer cresceu a ouvir a música turca do pai, embora não falasse turco. Só em adulta resolveu aprender a língua e parece ser próxima da família, visto usar as irmãs na sua banda e a dirigir-lhe os vídeos. Curiosamente, o pai dizia-lhe que em mais novo queria ter sido músico e ela pensava que ele estava a brincar – mas ele tocava o saz (instrumento turco) e ouvia música clássica otomana (não ouvia rock); anos depois ela própria tocou um saz em L/R, tema de Painless, o segundo disco.
Na adolescência aprendeu guitarra e virou-se para o rock – ao ponto de ter recusado um convite para fazer parte de uma girl band criada por um membro dos One Direction. Depois de colocar as suas canções no SoundCloud, causou frenesi com um primeiro disco, Miss Universe, em que já se destacava uma característica muito sua: a facilidade com que salta de géneros, viajando do indie-rock ao jazz, passando pela soul. Isso mantém-se em My Method Actor – e a dada altura chegamos mesmo a pensar em Sade, tanto é o veludo na sua voz.
[o álbum “My Method Actor”, disponível na íntegra no Spotify:]
Ainda assim ela acha a sua música indie e um pouco grungy – e em Like I say (I runaway) há guitarras sujas por todos os lados, mas isso é uma exceção num disco que gradualmente vai amainando e explorando a sua lentidão de réptil. Like I say (I runaway) tem guitarras sujas mas ainda assim não recorda nem os Pixies nem os Cure, que eram as suas bandas de eleição quando estava a crescer. (Ela tem uma ótima versão de Hey). Para sermos sinceros, Yanya não soa a ninguém, soando a variadíssimas coisas.
Binding, por exemplo: é uma simples malha de guitarra dedilhada e delicada, um beat sereno e depois aquela voz, rouca e expressiva – há uma intimidade que se cria, mesmo quando ela dá recados a si própria: “Don’t get attached”. A voz dá pequenos volteios e exsuda uma sensualidade estonteante (o que faz lembrar Sade, como já havia dito). Uma guitarra surge, a canção sobe um bocadinho, a voz sobe um bocadinho e estamos de volta ao dedilhado inicial – que coisa mais bela.
Não é, por isso, estranho saber que ela compara o ato de compor a terapia, com a diferença de que na terapia há uma pessoa a guiar o processo, enquanto ao compor é a compositora que tem de encontrar a saída sozinha. Bom, no caso com Will Archer, amigo e produtor do disco – a primeira canção com que ficaram realmente contentes foi Method Actor, que dá nome ao álbum: abre com teclados suaves, o que parece ser um contra-baixo e um trabalho cuidado de bateria: People like us / our dreams get faded, canta Nilüfer. Antes uma guitarra (aqui sim) grungy aparecer e controlar a canção, que depois retorna a um tempo mais calmo, servido por uma melodia bonita.
A canção levou a que ela começasse a ler sobre method acting: descobriu que apreciava a ideia de um ator deixar de representar, no sentido de encarnar por completo a personagem, de usar as suas próprias experiências para “ser” a personagem – e concluiu que se revia nesse método e que ela própria funcionava assim na sua escrita e interpretação e concertos. O nome ficou – a revelação faz todo o sentido e rima com a capa do disco e com a temática inquisitória que atravessa o álbum.
Mas a canção que a apaixona ainda agora é Binding, que tem algo de balada, de canção de Sade, e onde ela exibe a volúpia da sua voz. Ela canta I need your amnesia, que é o tipo de frase que nos faz parar para pensar o que quer dizer – ela própria diz que não está certa mas que acha que a letra da canção são sobre alguém que está fora de si, como se tivesse bebido demais e está a viajar, a tentar escapar, à procura de chegar a nada – como se quisesse deixar o corpo para trás.
[o vídeo de “Like I Say (I runaway)”:]
Binding inaugura uma sequência de três canções fenomenais: segue-se Mutations, que abre com um belo beat e um baixo interrogativo, enquanto as teclas cirandam em volta – o refrão abre um pouco, sem ser solar e no fim surge um inesperado arranjo de cordas. Os violinos regressam na canção seguinte, Ready for sun (touch) e são lindíssimos. Há uma batida irrequieta em fundo, mas tudo se passa em câmara lenta, num manso crepitar. Cada vez que as cordas entram a canção incendeia, muito por força da admirável melodia: “I think I really wanted to missed you”, canta ela.
Estamos, portanto, muito longe do barulho e da maluqueira de Miss Universe e também estamos longe das guitarras de PAINLESS, o segundo disco dela. A ansiedade desses discos dá lugar a algo a que podíamos chamar maturidade, ou então trabalho de composição: há barulho quando tem de haver, há silêncio e espaço quando estes são necessários, há requinte e cuidado em cada arranjo.
Há, aliás, um lado de torch song, de canção de dor de corno que atravessa o disco – logo na primeira canção, Keep on dancing, ela canta “I’m a loser first / Come on do your worst,” lançando o mote para a temática do disco. “What you looking for? / Shut up and raise your glass if you’re not sure / Still I can smile, it’s fucking miserable / So deep in the crime of being beautiful”, continua ela.
Nada disto seria possível antes – ela conta que há anos nunca aceitaria colocar arranjos de cordas numa canção, mas agora aprecia como elas abrem um espaço sónico diferente numa canção. Em Ready For Sun (touch) e Faith’s Late têm violoncelo e violinos, escritos pelo produtor Will Archer – no que toca a arranjos de cordas ela prefere entregar-lhe as rédeas, já que diz não saber escrever esse tipo de arranjos. Resulta perfeitamente – e quase se fica com pena de não haver um disco inteiro nesse registo.
O verão acabou e My Method Actor tem um tom outonal a perpassá-lo, uma melancolia introspetiva que nos agarra e arrasta, algo de misterioso e inquisitório a que não conseguimos fugir. Nilüfer cresceu e obriga-nos a olhar para os seus desastres sentimentais e existenciais – e o mais estranho é que apreciamos cada segundo, cada nota.