“Durante muitos anos era difícil convencer as pessoas a apanhar um barco para vir até cá. A ideia de vir ao Barreiro era uma coisa muito exótica”, diz ao Observador Rui Pedro Dâmaso, um dos fundadores e co-diretor do OUT.FEST (Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro) – que começa a 2 de outubro e dura até dia 6 – e que este ano celebra a vigésima edição.
Se era assim tão difícil congregar ali o público, quisemos saber o que mudou, qual o segredo para um evento conseguir sobreviver durante tanto tempo, superando a longevidade de vizinhos como o Barreiro Rocks. A resposta não foi concreta. Bate certo com o princípio apaixonado e nem por isso racional que tem orientado o festival anualmente.
“Não faço ideia”, afirma rapidamente e entre risos. “Todos os percursos são feitos de circunstâncias específicas. Temos tido sorte porque temos conseguido continuar a fazer o festival acontecer. Mas também temos tido o trabalho e a preocupação de querer melhorar de ano para ano e continuar assim no futuro”, explicou-nos.
O OUT.FEST aconteceu pela primeira vez em 2004 de uma “forma muito espontânea”, descreve Rui, através de uma colaboração do próprio e de Vítor Lopes, que continua a servir como um dos líderes do evento. Na altura, os dois amigos tinham uma banda, os Frango, um de muitos projetos musicais que existiam na cidade, gente como os Gala Drop, os Loosers ou os Tropa Macaca.
A vontade de criar um festival surgiu não só para dar palco a todos estes grupos, mas também para mostrar as várias facetas da música experimental e da expressão artística que é feita pelo mundo.
“Na altura, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, começou a haver muitos concertos e a presença de bandas internacionais. Isto gerou um encontro de bandas e de pessoas que andavam a fazer e a ouvir música de formas semelhantes”, recordou o diretor. “Começou como um evento muito informal e não muito pensado durante os primeiros 3 ou 4 anos, mas foi evoluindo e crescendo ao longo dos anos. No início nem fazíamos ideia se ia haver uma segunda edição, quanto mais uma vigésima. A identidade atual também se foi construindo, não era algo que estivesse estabelecido desde o início”, acrescentou.
Hoje, o OUT.FEST é uma das maiores instituições da música experimental tendo dado palco não só a importantes artistas nacionais, como Rafael Toral, Telectu ou Rodrigo Amado, mas também artistas emergentes Odete, Tristany ou Linn da Quebrada, sem esquecer os icónicos nomes internacionais como Panda Bear, The Fall, Damo Suzuki (falecido vocalista dos lendários Can), Sonic Boom (co-fundador dos Spacemen 3) ou Stephen O’Malley (metade do grupo de drone metal Sunn O))) ).
Além da constante mutação da identidade do festival, uma das principais diferenças das edições mais recentes é a inclusão de mais salas e espaços de espetáculo no roteiro. Nesta edição, o OUT.FEST vai acontecer em dez locais diferentes: o Auditório Municipal Augusto Cabrita, Sala 6, Igreja de Nª Srª do Rosário, SIRB “Os Penicheiros”, Escola de Jazz do Barreiro, Igreja de Stª Cruz, ADAO (Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios), Biblioteca Municipal, SCR Paivense e o Largo do Mercado 1º Maio.
“Há uma parte da identidade do festival que é associada à exploração das salas no Barreiro. Isto é indissociável daquilo que o OUT.FEST tem sido. Se numa primeira fase foi algo que evoluiu por necessidade, foi algo que percebemos que fazia sentido apostar porque diferentes tipos de música pediam diferentes contextos para ser ouvida. Sejam salas para estar sentado, para estar de pé, mais pequenas, mais intimistas. Temos uma relação de grande interesse e curiosidade pelos espaços históricos da cidade e é um prazer dar a conhecer estes locais”, acrescentou.
E claro, o prazer e identidade deste encontro anual também passa por dar a conhecer artistas que estão na vanguarda dos seus respetivos estilos musicais. “Uma das maiores dificuldades de programar este festival é escolher apenas 30 artistas entre o universo quase infinito de coisas que gostamos e gostávamos de trazer”, confessa-nos Rui.
Entre alguns dos destaques da presente edição do OUT.FEST podemos encontrar artistas como o duo de hip-hop experimental Armand Hammer, a artista aimara (povo estabelecido desde a Era pré-colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile) Chuquimamani-Condori, o DJ brasileiro Anderson do Paraíso ou o novo projeto que une a produtora Nídia à percussionista Valentina Magalett.
Apesar de existirem poucas referências ao aniversário redondo – não estivessem os organizadores mais preocupados em olhar para o futuro – o primeiro dia do festival vai ser marcado pelo lançamento de um livro que celebra os 20 anos e é possível ver uma exposição fotográfica da autoria de Vera Marmelo no Largo do Mercado 1º Maio (que pode ser visitada até ao dia 13 de outubro e que mostra fotos como as que ilustram este artigo).
Os programadores continuam a divertir-se a descobrir novos artistas e a levá-los à sua terra natal. Desta forma, continuam a inspirar uma nova geração de músicos e organizadores de eventos. “A minha geração, que cresceu no Barreiro e que está envolvida no OUT.FEST há mais tempo, viveu um período muito rico em termos de cultura alternativa e de vida noturna. Existiam muitas bandas e bares onde era possível acontecer muitas conversas ligadas à música e tínhamos a noção que havia gerações anteriores que também estavam na cena”, começa por explicar.
“Com o passar do tempo, a minha cidade mudou e, durante algum tempo, ficámos com receio que nós fôssemos a última geração que tinha conhecido este Barreiro, tão próprio e autossuficiente do ponto de vista cultural.”, nota Rui.
No entanto, o fundador do festival reconhece que o seu trabalho foi essencial para manter o Barreiro “vibrante” e um destino cultural relevante. “Por causa do OUT.FEST e não só, temos assistido a uma renovação geracional, com muitos miúdos novos a aparecer, a tocar, a fazer associações e a organizar coisas”, elogia, referindo também que tiveram um contributo para que esta cidade tivesse uma maior visibilidade em relação aos habitantes da capital.
“Contribuímos para que uma certa comunidade de Lisboa passasse a considerar o Barreiro como uma parte habitável da cidade de Lisboa. Um sítio que é mais fácil de aceder do que as pessoas imaginavam e onde é possível encontrar também uma maneira interessante de fazer as coisas”, afirma.
Apesar do prazer e de sentirem que estão a concretizar uma missão importante, existem várias dificuldades inerentes à organização de um festival. A inflação torna tudo mais caro e há pouco alojamento para receber o público. Ainda assim, os programadores pretendem continuar a trazer o melhor da música exploratória à cidade setubalense no futuro. Rui não nos garante que tenhamos mais 20 edições de OUT.FEST, mas pelo menos mais uma década de bons concertos (enquanto está na casa dos 50 anos) garante que está para acontecer.
“Sentimos que ainda há muita coisa para fazer com o OUT.FEST. De certeza que vai ser um reflexo daquilo que vai ser a evolução do mundo, para o bom e para o mau. Portanto, enquanto as circunstâncias permitirem, vamos continuar a atuar a todos os níveis”, promete.
Perguntámos ainda a Rui Pedro Dâmaso se, depois de 20 anos, ainda tem uma lista de desejos com artistas que gostaria de ver no festival. Como não poderia deixar de ser, a resposta é dada com os olhos postos no futuro.
“Existem muitos artistas que já não podem vir porque, infelizmente, já morreram. Há outros que, talvez, se tenham tornado grandes de mais. Mas essa é uma pergunta à qual não consigo responder. Existem pessoas que ainda nem devem estar a fazer música e que se calhar um dia vão tocar no OUT.FEST e vai ser incrível. Portanto, não vale a pena estar preso a listas do passado. É mais importante estar atento ao que está a acontecer agora”, conclui.
Apesar do passe geral estar esgotado, ainda é possível adquirir bilhetes diários para o OUT.FEST. Os preços oscilam entre os 10€ e os 25€.