Andrew Garfield esteve uma semana de férias em San Sebastián, informação do conhecimento de muito poucos. Na reta final do festival de cinema daquela cidade (SSIFF), o britânico mostrou que estava pronto para regressar aos grandes palcos, depois de um período sabático prolongado durante o qual colocou em pausa a participação em filmes de larga escala. No país basco foi mostrar o seu mais recente filme, produzido pela hoje em dia muito recomendável A24, Todo o Tempo que Temos, comédia de ambições mais ligeiras, com Florence Pugh. O filme, que se estreou esta semana em Portugal, conta a história de um casal que descobre que a mulher tem cancro terminal, uma viagem existencial onde a doença apresenta um dilema: aproveitar os seis últimos meses da melhor forma possível ou apostar no tratamento sem saber o seu resultado.
A 28 de setembro, o sábado que foi dia de encerramento do festival de cinema de San Sebastán, Todo o Tempo que Temos foi mostrado na cerimónia de fecho. Um dia antes, Andrew Garfield surpreendia um grupo restrito de jornalistas europeus ao conceder entrevistas, algo que não aprecia especialmente — isso e selfies. O Observador participou numa dessas conversas, durante a qual, em pouco tempo, se utilizou a urgência do tempo para falar sobre super-heróis, mitos, capitalismo e o que muda aos 40 anos. “Pela primeira vez na minha vida estou noutro espaço mental, sinto uma certa urgência de abrandar e absorver o máximo possível, saber o balanço entre as histórias que quero contar, os sítios, os atores, as pessoas e as entrevistas”, afirmou.
[o trailer do filme “Todo o Tempo que Temos”:]
O ator Americano, nascido em Los Angeles há 41 anos, já tinha trabalhado com John Crowley, realizador de Todo o Tempo que Temos, muito antes de se tornar o segundo Homem-Aranha mais famoso do mundo, em 2012. Foi em Boy A, drama sobre a segunda vida de um jovem, após a prisão. O cineasta irlandês achou que uma história ternurenta a puxar a lágrima, entre uma chef em ascensão e um divorciado sentimental, poderia ser o convite certo para que Andrew Garfield voltasse a trabalhar com ele. E, sobretudo, voltasse a trabalhar no e com o Reino Unido.
Em 2022, participou na mini-série Em Nome do Céu como detetive, projeto que passou despercebido ao circuito mais mediático. Pouco mais fez para um público que se pudesse aproximar ao que conquistou no universo da Marvel e, sobretudo, o que continua a pedir-lhe que volte a vestir o fato e a lançar teias, tal como fez, num regresso muito aguardado, em Homem-Aranha: Sem Volta à Casa (2021). O ator disse, recentemente, que não se importava de voltar ao papel de forma pontual, mas que um regresso de corpo inteiro não estava no horizonte.
Mesmo tendo em conta essa expectativa que pode sair furada, em San Sebastián Andrew Garfield não se comprometeu sobre o mau momento dos filmes de super-heróis. São vários os artigos que apontam para uma fadiga face ao universo da MCU e da DC Comics, ainda que, por exemplo, Deadpool & Wolverine tenham tido muito bons desempenhos no verão deste ano, ultrapassando os 600 milhões de dólares em box office só nos Estados Unidos da América. “Sobre essa fadiga não tenho qualquer comentário a fazer. Não sei se as pessoas estão fartas. Mas sinto que o mito do herói continua a ser muito importante para as pessoas, se bem que acho que precisamos de outro. Prefiro o do génio, o que diz que cada um de nós é um génio que pode trazer algo de bom para a comunidade. Sem esse génio, uma comunidade não pode estar curada”, refere.
Garfield é ambíguo e, por vezes, vago. Tanto mostra ser, de facto, uma estrela de Hollywood nos maneirismos e no discurso como discorre sobre o capitalismo e a filosofia por detrás de um consumismo mediático cada vez maior. Veio acompanhado de seguranças — ou de amigos, não foi possível compreender — que o acodem sempre que precisa de algo. Tem uma pequena equipa com ele. “Somos todos poderosos, mas condicionados a não crescer, é algo que vem desta era pós-industrial ultra moderna e capitalista porque temos de ser bons consumidores.” A imprensa norte-americana alega que Garfield sempre foi assim: honesto, sentimental, com uma abordagem mediática diferente, que podia envolver um gesto pouco habitual como rapar o cabelo para um videoclip dos Arcade Fire ou propor uma tour para promover o seu Homem-Aranha por hospitais e centros sociais.
Quando a conversa muda para Todo o Tempo que Temos, Andrew Garfiled suaviza o discurso para um lugar de conforto, onde encontrou Florence Pugh pela primeira vez nas lides da representação. Nunca tinham trabalhado juntos, o que podia levantar dúvidas sobre um filme tão íntimo (e a espaços tão banal) como este, onde todas as cenas, desde o anúncio e o desenvolvimento de uma gravidez, ao início da relação, às zangas e ao sexo, pedem que os atores saibam vender bem uma vida dentro de uma relação. “Uma das coisas mais bonitas deste filme sentir toda a equipa a revelar algo. Houve um lado pessoal ligado ao guião. Eu, a Florence e o John encontrámos segurança para criar. E ser vulneráveis, crus, abertos. Todos os sentidos para servir o público”, confessa.
O realizador John Crowley também não conhecia Florence Pugh e desafiou Andrew Garfield a pensar se poderia ser a combinação perfeita. Não tinha mais ninguém em mente. “Não podemos criar o mistério, temos de o convidar a entrar no filme. Achei que o Andrew tinha uma relação forte com a história [a mãe do ator morreu, em 2019, com cancro, apesar de, durante a entrevista, nunca o ter referido] assim que fizemos um primeiro zoom, falámos imediatamente da Florence, mesmo nunca a tendo conhecido.”
Ao contrário do que se podia pensar, Todo o Tempo que Temos não teve assim tantos ensaios: duas semanas e pouco mais. Quando Andrew Garfield é questionado sobre como é possível colocar no ecrã a credibilidade de uma relação, volta ao início da conversa: “Não consigo dar uma boa explicação”. Mas mal se puxa por ele, a lógica por detrás deste seu novo trabalho começa a surgir. “Tem de haver fé e confiança, é como numa relação íntima. É preciso abrires-te e dizer “aqui está o meu coração”, mesmo que o outro lado não goste do que vai ver. Sabia que o filme exigia esse lado. Depois, nos ensaios, descobrimos que estávamos disponíveis para brincar, para cuidar um do outro, para que cada um chegasse ao seu verdadeiro potencial. Rimo-nos muito”. Esse feeling que dá a audiência a sensação de algo reconhecível não é assim tão convincente como Andrew Garfield faz crer neste filme. Há uma certa plasticidade que joga pelo seguro: uma história como esta nunca tem como não resultar junto de uma determinada audiência.
Andrew Garfield já leva uma carreira de 25 anos. Aos três anos, filho de pai americano e mãe inglesa, muda-se para Inglaterra. Esteve para se tornar atleta, entre ginástica e natação, mas foi parar às artes onde também experimentou de tudo um pouco. Uma peça de teatro fez com que um dos seus professores, tal como conta um longo perfil de Andrew Garfield na revista Esquire, lhe dissesse: “Se levares isto a sério, podes tornar-te num ator”. O irmão, para agrado do pai, tornou-se médico. As pretensões de um dos Homem-Aranha eram, como tantas vezes são, a desilusão de um dos progenitores.
Em 2010, tudo mudou com o filme A Rede Social (2010), de David Fincher, análise crua à criação do Facebook, onde fez de Eduardo Saverin, um dos melhores amigos de Mark Zuckerberg. E depois, as portas do céu, ou do estrelato dos super-heróis, abriram-se quando vestiu o fato vermelho às riscas pretas, onde continua, ainda hoje, a partilhar o simbolismo e o peso histórico do Homem Aranha, com atores como Tobey Maguire ou Tom Holland. Fez dois filmes, ainda quando a personagem aracnídea pertencia à Sony. Não chegou ao terceiro. A fama desse papel ainda o persegue, para sua satisfação e cansaço, bem como o relacionamento que teve com a atriz Emma Stone.
Também conquistou um lugar no teatro (e na Broadway) onde, por exemplo, brilhou, ganhando um prémio Tony, ao lado de Philip Seymour Hoffman em Morte de Um Caixeiro Viajante. Em filmes onde entrou, como tik, tik…Boom ou Silêncio, e noutros onde está a trabalhar, como After The Hunt (realizado por Luca Guadagnino) ou The Magic Faraway Tree (adaptação dos populares contos infantis de Enid Blyto), consegue mostrar que, apesar de criticar a cultura obsessiva à volta das celebridades da qual não consegue fugir, gosta de pertencer ao sistema, ainda que à sua maneira. Chegou a ser nomeado aos Óscares com O Herói de Hacksaw Ridge(2017) mas nunca o ganhou.
Por agora, aos 41 anos, e ao interpretar um jovem pai num dos piores dilemas possíveis, pensa, com muitas reservas, sobre a parentalidade. E sobre o capitalismo. A vida. A morte. E a representação. Em poucos minutos, o ator conseguiu mostrar ser tudo e o seu contrário. Desconcertante, no mínimo. “Esta arte serve para nos relembrar do que somos capazes”, disse. Nem mais uma pergunta. Nem fotografia. Estaria, afinal, também a representar no hotel Maria Cristina? Andrew Garfield, no fim da conversa no festival de San Sebastián, recebeu de um dos amigos (ou seguranças) uma pequena caixa com trufas de chocolate lá dentro. Já se sabia que o ator gostava pouco de partilhar detalhes da sua vida privada. Ao menos, na escolha de iguarias para curar o cansaço do jetlag e das perguntas de jornalistas foi revelador: é mais doces.