Não é ainda certo que a Inteligência Artificial não venha a colocar em causa dezenas de postos de trabalho na área do cinema. Para já, ferramentas como o ChatGPT têm sido utilizadas das mais variadas formas na sétima arte. Nara Normande, co-realizadora do filme Sem Coração ao lado de Tião, contou ao Observador que uma espectadora pediu àquela aplicação sugestões de filmes brasileiros de ficção científica. O resultado foi precisamente esta longa-metragem, que se estreia esta quinta-feira em Portugal, com distribuição da Nitrato Filmes, onde se conta uma história do final do século XX em Alagoas, nordeste do Brasil, à volta de um grupo de jovens, entre a beleza e a violência, onde Maya de Vicq) vive com medo de algo bom que lhe está prestes a acontecer.
Tem pouco de ficção científica, é mais ligado a um realismo com a magia ingénua de gente nova à procura de um sentido. Por ali não habitam algoritmos, só existe um lugar paradisíaco que não se coíbe de mostrar ventos de homofobia, pobreza, descoberta da sexualidade, o privilégio e a angústia de partir. Sem Coração cruza a liberdade de quem vive longe das grandes metrópoles com a classe social de cada uma destas jovens figuras. E aqui, literalmente, se vive tudo à flor da pele. O filme esteve no Festival de Veneza em 2023 e venceu o Prémio do Público no festival Queer deste ano, em Lisboa.
[trailer oficial do filme “Sem Coração”:]
Sem Coração parte de um trabalho anterior de ambos os realizadores numa curta com o mesmo nome que foi premiada em Cannes em 2014. É um prolongamento, uma nova exploração, para perceber o impacto do momento original num pequeno grupo de miúdos. A grande diferença é que, ao contrário do primeiro projeto, onde uma pessoa estranha chega aquele lugar, agora temos alguém de uma classe média que tem de sair para ir estudar para Brasília, no meio de tantas emoções que está a descobrir. Ficam os outros, com menos posses, menos oportunidades, entregues a tempos livres passados dentro de pequenos assaltos a casas de ricos e bailes de rua, onde o perigo vai espreitando. O mar junta-os, a paisagem é um recreio a céu aberto, em que a falta de responsabilidades — ou de figuras de autoridade — convida às mais ingénuas tropelias.
Nara Normande, tal como Tamara, também nasceu na região de Alagoas (em Guaxuma, para ser mais concreto) e, por isso, nesta que é a sua primeira longa-metragem, com produção de Emilie Lesclaux (de Bacurau, realizado por Kléber Mendonça Filho, que também produziu esta obra), colocou aqui uma experiência pessoal. “Também me aconteceu estar a despedir-me deste lugar. Saí de Alagoas com 13 anos. O lugar da Tamara é diferente dos outros, tem um privilégio que os amigos não têm, vai conhecer um sentimento novo com a ‘Sem Coração’. No fundo, é Tamara que se vai embora mas, antes, observa tudo quanto pode”, contra em conversa com o Observador.
Tamara descobre que gosta de mulheres, vê um dos seus amigos a ser apertado por capangas e descobre que outro foi morto e deixado à beira da estrada. Tudo isto num tom sempre natural, que não puxa a lágrima fácil do espectador. No fundo, é confrontada com a sua condição de privilégio e o quão inconsequente pode ser perante a realidade que a rodeia.
Mas quem é esta Sem Coração (Eduarda Samara)? Uma jovem com uma cicatriz no meio do peito, que pesca em apneia como ninguém. É feroz, não se deixa limitar pela condição de saúde, que nunca sabemos realmente qual é. Não precisamos. A sua personalidade misteriosa deixa Tamara intrigada. Uma fantasia digna da idade, que a deixa com vontade de descobrir mais. Sem Coração é, de facto, intrigante porque diz pouco e repete os seus hábitos clinicamente. Vive com o pai pescador numa pequena casa. Deixa que os jovens tenham sexo com ela, dentro de uma piscina vazia, sem revelar um pingo de tesão. “Este é um lugar bonito e violento, quisemos trabalhar sobre o medo do que queremos, que é algo não tanto habitual. Mas é um medo que também está ligado à coragem, tal como mostra a personagem da ‘Sem Coração’. Nunca quisemos mostrar fragilidade, fazê-la de coitadinha”, revela Tião.
A história de Sem Coração tem, de facto, um lado pessoal que vai além das raízes de cada um dos realizadores. Constituída por um elenco de atores não profissionais, que estiveram em ensaios durante um mês antes da câmara começar a rodar, foi preciso conversar muito sobre o que estavam a filmar. Sobre a violência dos atos (e das palavras), as cenas sexuais — ainda que subtis, mas novas para jovens adultos — e sobre a morte. Uma das personagens, o Galego, morreu na vida real, tendo entrado na curta-metragem que deu origem a este filme. Na verdade, Galego foi assassinado. Contudo, os autores quiseram controlar o drama, não deixar cair a ação num voyuerismo que só ajudaria a intensificar preconceitos sobre o Brasil.
Por vezes, para mostrar a beleza ou a violência, só precisamos de silêncio numa cena entre mãe e filha, na qual as duas cantam um tema de Maria Bethânia, mostrando que, mesmo não estando no mesmo ponto de conversa, entendem-se. É igual a quando, a certa altura, vemos o corpo de Galego no chão, rodeado de desconhecidos numa espécie de velório improvisado. “Na cena em que o Galego morre ficámos emocionados, porque ele existiu mesmo. Não foi fácil falar destes temas todos. Nessa cena, um dos atores mais novos, que grita a certa altura, demorou muito até conseguir chegar a esse ponto. Vem de uma favela, já passou por situações de violência. Para maior parte deles era a primeira vez que estavam a representar. E são todos de classes sociais diferentes”, conta o realizador. Sem Coração revela ser um coming of age, dando a mão a uma juventude a quem o peso do mundo impede de atingir voos mais altos mas.
É empático e duro, não interfere, mostra. Uns novos e inovadores Capitães da Areia (Jorge Amado) que mostram como o fim da era de Jair Bolsonaro, que cortou e congelou financiamento público na cultura, está a deixar florescer um cinema brasileiro que encanta, mas que nada esconde. Não pede pena, não diminui a classe social a um papel de criminoso, nem vende carnavais para inglês ver. “É mais fácil destruir do que reconstruir, o bolsonarismo continua muito entranhado. Mas estamos a conseguir provar que outros valores, como a beleza e a empatia, são mais fortes. O Bolsonaro foi o primeiro presidente depois da redemocratização do Brasil a não ser reeleito. É esse o lado mais bonito deste país”, contam ambos os realizadores.