Os Artistas Unidos estreiam no sábado, no Teatro Aveirense, a peça “1984 de George Orwell — uma nova adaptação de Robert Icke e Duncan Macmillan”, que revisita a obra de Orwell “através do apêndice”, disse o encenador Pedro Carraca.
O apêndice de “1984” explora “Os Princípios da Novilíngua”, o idioma imaginado por Orwell para o governo autoritário da obra, assente na remoção e condensação das palavras, assim como dos seus significados comuns, de modo a restringir e controlar o pensamento de cada pessoa.
Há cerca de dez anos, os dois dramaturgos e encenadores britânicos pegaram na obra de Orwell e reescreveram-na partindo do pressuposto, “completamente diferente”, de a olhar “através do apêndice”, disse o encenador à imprensa, no final de um ensaio preliminar do espetáculo.
“Eles descobriram pequenas coisas no apêndice que indicam que o próprio Orwell gostaria que olhássemos para a obra não como uma coisa que está a acontecer no momento, mas sim como algo que aconteceu muito tempo antes de o livro” ter sido escrito, acrescentou Pedro Carraca.
Robert Icke e Duncan Macmillan fazem então “toda uma pequena brincadeira com isso”, em que o herói da peça se transfere “de Winston para o ‘1984’ em si”. Ou seja, “o protagonista deixa de ser o herói para passar a ser o romance” em si mesmo, “que foi uma das coisas que muito me agradou”, confessou o encenador.
Pedro Carraca define o apêndice como “o fim da obra conforme Orwell a escreveu”, onde o autor aborda a “quantização da linguagem”, com “pequenas alíneas que dão a ideia de que na verdade” se trata de uma espécie de epílogo “escrito muitos, muitos anos depois do livro”.
Escrito em 1948 (o título será um anagrama da data), editado em 1949, um ano antes da morte de Orwell, “1984” decorre num país fictício e retrata uma realidade distópica, num regime totalitarista em que todos são vigiados pelo Grande Irmão.
A Novilíngua desse universo não só elimina palavras que se refiram a conceitos abstratos e permitam às pessoas elaborar sentimentos, como impede qualquer perceção de poder existir outra linguagem. Não há palavras como honra, coragem, vergonha, dignidade, liberdade. Sem elas, acaba-se a possibilidade de cada um se exprimir a si mesmo. Sem elas, só é possível pensar em objetos.
Winston Smith, protagonista da obra, sonha com um mundo livre. Conhece o processo de alienação. Trabalha no Ministério da Verdade, reescreve o passado conforme a Novilíngua e tem de destruir o que não pode ser reescrito. Apesar do risco, tem um diário pessoal, o que é pura transgressão. O sentimento de revolta é reforçado quando conhece Júlia e por ela se apaixona. Seduzido por O’Brien, pelos seus bens e pelo que parece ser uma hipótese de revolta, Winston acaba por se tornar num peão deste, afinal um agente do regime, e é capturado. No final, sobra-lhe apenas a denúncia, para poder sobreviver, e a submissão plena ao Grande Irmão.
Num cenário futurista, despojado e com forte componente vídeo, a peça “1984 de George Orwell — uma nova adaptação de Robert Icke e Duncan Macmillan” coloca a ação em 2050 e centra-a num grupo de pessoas que lê o diário escrito por Winston Smith.
Ao pegarem no apêndice, “que é também a obra em si”, ainda que não conste em todas as edições de “1984”, o texto de Icke e MacMillan torna-se “refrescante”, porque os autores “foram buscar ‘1984’ de uma maneira que, de repente, não é bem a forma que estaríamos à espera de o ver em peça de teatro”, enfatizou o encenador.
A peça destrói mesmo “a ideia de que há um escritor daquele livro, que é um livro já manipulado pelo partido”, notou.
“Eles até insinuam, e isso é só para os mais atentos, que o livro do 1984 que o Winston está a escrever é o próprio livro de Goldstein [líder da conspiração contra o regime no livro de Orwell], escrito a várias mãos”, frisou Pedro Carraca.
A peça foi encenada pela primeira vez no Reino Unido, em 2013, e valeu aos dramaturgos o prémio para Melhor Encenação do teatro britânico (United Kingdoom Theatre Awards – UK Theatre), em 2014.
Com tradução de Eduardo Calheiros Figueiredo, o espetáculo é interpretado por Ana Castro, Carolina Salles, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Paulo Pinto, Pedro Caeiro, Raquel Montenegro, Tiago Matias e Victor Gonçalves.
O vídeo que acompanha a ação em palco conta Américo Silva, Ana Amaral, Ana Gomes, Carla Madeira, Décia Tavares, Diana César, Eduarda Arriaga, Gonçalo Pereira, Hélder Braz, Inês Puga, Inês Tamar, Joana Calado, João Carvalho, João Meireles, João Reixa, Lara Canteiro, Malu Vasconcellos, Maria Costa, Maria Romana, Natacha Romão, Pedro Carraca, Rafael Arnaud, Raquel Ferradosa, Ri S. Lavado, Rúben Soares, Teresa Grisante, Tomás Henriques, Uberti e Vicente Wallenstein.
A peça tem cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos, som de André Pires e vídeo de Jorge Cruz e Nuno Barrocas. A estreia em Aveiro, no âmbito da programação da Capital Portuguesa da Cultura, realiza-se no próximo sábado, dia 09, às 21:30.
Na itinerância dos Artistas Unidos, que continuam sem espaço próprio desde o despejo do Teatro da Politécnica, em Lisboa, em julho, a peça terá récitas, ainda este mês, no dia 16, no Teatro-Cine de Pombal, e no dia 22, no Auditório do Fórum Cultural do Seixal, ambas às 21:30.
A peça é produzida pelos Artistas Unidos, pelo Teatro Aveirense e pelo Centro Cultural de Belém (CCB), onde terá três récitas, de 21 a 23 de fevereiro de 2025, às 20:00, 19:00 e 17:00, respetivamente.