Pode parecer contradição, mas não é. Tantos anos depois, Lena d’Água continua a mesma, em voz e em pensamento, e não está a pensar ir a lado nenhum. Cinco anos volvidos sobre Desalmadamente, aclamado álbum de regresso e reclamação do seu lugar na pop portuguesa, a cantora subiu esta terça-feira ao palco do São Luiz para apresentar Tropical Glaciar disco em modo de festa que dá continuidade ao caminho iniciado pela cantora no antecessor. A julgar pelo que se viu e ouviu, a mensagem é clara: nos planos de Lena D’Água, o melhor continua a estar para vir.
O efeito de Desalmadamente, primeiro trabalho de estúdio em três décadas que lhe conquistou toda uma nova geração de fãs, saltava à vista olhando para o público no teatro lisboeta: uma plateia em boa medida jovem, que reservou os maiores aplausos e ovações da noite não para clássicos como Robot ou Sempre que o Amor me Quiser, mas para os êxitos do passado recente, como Grande Festa ou Pop-Toma, single do novo álbum. Se é que alguém tinha dúvidas, eis mais uma prova: Lena d’Água atravessou gerações e (re)conquistou o seu espaço.
E se já lá vão praticamente 50 anos desde o início da carreira a bordo da pop-rock dos Beatniks, Lena d’Água, que mantém a mesma jovialidade de sempre na voz, não esconde que continua a ficar nervosa ao subir ao palco. Ainda soavam as últimas notas de Tropical Glaciar, ponto de partida do concerto de apresentação, e já a cantora se apressava a agradecer o carinho recebido do público em reconhecimento de uma primeira prova superada.
Depois, avançou: em Fruta Feia lamenta a falta de oportunidades para quem não correspondem às expectativas. Fica difícil não identificar versos como “não és igual ao que convém / não segues uma norma ou padrão”. Já em Chá, propõe com ironia uma mezinha para os males do mundo, enquanto o baixo de Nuno Prata e as teclas de Vicente Santos ditam o ritmo e o tom.
Lena d’Água: “Sou muito mais provocadora agora do que quando comecei a cantar”
A seguir a Grande Festa, apoteose de Desalmadamente e um dos momentos altos da noite, o concerto fez-se viagem no tempo, recordando com um par de canções do início da década de 80 a vida e obra de Luís Pedro Fonseca, companheiro e o seu grande colaborador nesses anos: Vígaro Cá, Vígaro Lá, tema do primeiro disco, ainda com a banda Atlântida; e a incontornável Robot, originada nos dias dos Salada de Frutas e cujo mote futurista e repetitivo se revelava vanguardista.
Ao longo dos cerca de 90 minutos de concerto, as canções e os aplausos bailaram coordenados. Em O Que Fomos e o Que Somos, tema de Desalmadamente e recordação agridoce da passagem do tempo e de amores perdidos e reencontrados, fomos lembrados de que “há sempre uma primavera/ quando inverno passar”. Depois, mais um par de músicas de Tropical Glaciar, com a intérprete a apontar ao futuro e à “canção que ainda está por fazer”, antes de partir para a sonoridade quase infantil de Semente, tema onde assume as raízes que deixou numa geração de artistas, homens e mulheres, que cresceram a ouvi-la. “Júlia, gostaste desta?”, perguntou no final à sobrinha-neta, na plateia. Lena d’Água está aqui para nos divertir, mas sobretudo para se divertir.
Após guiar o público em coro para cantar as palavras de ordem de Demagogia, recordar a azáfama da cidade no Portugal recém-livre de Carrossel e recuperar a tropicalidade new wave indelével em Dou-te um Doce, a cantora abriu o jogo sobre o processo de criação do mais recente disco – inteiramente composto, à semelhança do último, por Pedro da Silva Martins, guitarrista, membro dos Deolinda e o grande obreiro da “nova” Lena d’Água. Em Carne Vegan, por exemplo, o registo é sensual, quase ofegante e provocador. Porque é a mesma Lena D’Água que, em 1984, cantava que “sempre que o amor me quiser / basta fazer-me um sinal” e que agora, mais experiente, sagaz e com uma ou outra desilusão amorosa pelo caminho, se tornou ainda mais dona de si mesma.
Houve ainda tempo para Hipocampo, outro tema de Desalmadamente que lançou o público em festa de braços no ar, antes de um final ao som de Pop-Toma, single de Tropical Glaciar que já ameaça tornar-se num dos grandes êxitos do novo disco e onde Lena d’Água laça uma crítica e um desafio à sociedade do consumo fácil, de quem só quer “a letra fácil e a canção orelhuda” e se deixa subjugar pela ditadura da imagem.
Chegados ao encore, um exercício de reflexão temporal. Voltas Trocadas ressoa num arranjo intimista, apenas com a guitarra de Catarina Falcão, das Golden Slumbers, em palco (a guitarrista confessou-se nervosa e pediu “o amor” do público. O homónimo Desalmadamente olha para o espelho que envelhece e para uma artista que promete “deixar-se ir na boa”. A noite termina com Sem Pressa, o mais recente single do novo disco, com Lena d’Água a assegurar-nos que “devagar tudo se faz / e a vida vem atrás”. Uma lição para o final da noite.