Quatro anos se passaram desde a sombra do confinamento. Os ensaios finais de Noche, espetáculo em que Alma Söderberg volta a pegar nas premissas que fizeram de The Listeners (2020) um dos mais irreverentes espetáculos dos últimos anos, não sentiram que esta sombra colocasse o seu trabalho em risco. Muito pelo contrário. Foi exatamente nesse momento que Alma Söderberg percebeu que Noche começaria ali, no mesmo momento em que o seu primeiro espetáculo terminara. Era agora a noite que guardava o próximo “legado”. É a estreia Portugal, mas este foi um projeto anteriormente coreografado para dez intérpretes da Cullberg, a companhia de dança sueca que já teria contado com a sua participação no projeto anterior.
Mais do que acontecia em The Listeners, Noche vive de uma necessidade imperiosa que Alma Söderberg identificou como “sintonizarmo-nos uns com os outros ainda que de formas diferentes”. E se o seu primeiro projeto se estreou na experiência de fazer algo para um grupo maior, foi também a primeira vez que os bailarinos da companhia se interligaram uns com os outros como se fossem músicos com os seus instrumentos. Neste caso, o instrumento era o corpo, e a sua melodia era o movimento. “Eles estavam habituados a relacionar-se apenas como intérpretes e, no meu trabalho, os intérpretes são sempre bailarinos e músicos em simultâneo”, começa por explicar a coreógrafa.
Mas não se trata apenas dos bailarinos que recebem estes papéis. A proposta de Söderberg vai mais longe. Chegar ao público como se este fosse parte essencial destes espetáculos. “O objetivo era também condicionar o público a ‘sintonizar-se’ de forma diferente na dança, ou seja, usando mais os ouvidos, mais a sua musicalidade do que o seu olhar teatral, a sua narrativa. Algo mais sensual e musical e, por isso, The Listeners tornou-se uma peça, de certa forma, muito ligada à sintonia e à descoberta mútua da comunidade de diferentes formas”, realça enquanto insiste em explicar o quão o seu primeiro trabalho influencia Noche e, por sua vez, se torna o reverso desta “moeda” artística que nos dá.
Se em The Listeners tanto o design de luz quanto a narrativa pintavam um final de tarde suave, em Noche é a noite que nos emerge. E este é um dado relevante porque, apesar de serem projetos únicos, dialogam de forma muito clara. Se uns nos remetem para a subtil forma de ser, o outro leva-nos a uma sensação de liberdade no oculto. A liberdade de fazer e sentir num lugar seguro que, para a artista, se concentra na noite.
Tal como em The Listeners, há pequenos fragmentos de poesia e de composição de canções, “coisas que escrevemos ou que surgiram inspiradas no trabalho de outros poetas”, avança a coreógrafa. Talvez por isso alguns excertos musicais e composições visuais, como os bailarinos reunidos em círculo, no centro do palco, com uma luz quente que incide no íntimo do mesmo círculo que definem e, por sua vez, incita a movimentos de repetição espontâneos, quase como “chamamentos” de comunidade, nos transportem para referências musicais como Jesus Walks, de Kanye West, lançada em 2004. Ou a uma exploração da consciência rítmica e da sua relação com o corpo como Ari Aster tentou explorar no filme Midsommar – The Ritual, em 2019. Mas se nestas referências, as ações se excedem do dia para a noite, em Noche, vemos uma invocação de algo, tal como reconhece a coreógrafa: “A certa altura, percebi que estamos a entrar nas noites com esta peça. E com isso vem uma intensidade maior, uma relação mais forte entre o indivíduo e o múltiplo”.
Söderberg procurou chegar a um lugar onde “um indivíduo, uma pessoa singular ou, por sua vez, um ato singular” se tornasse mais desafiante. Ocupasse mais espaço. Quebra-se. Fosse mais errático e lhe permitisse desaparecer numa multidão.
Quando vemos pela primeira vez o espetáculo, a liberdade inunda cada espaço vazio que ainda possa restar. É dada permissão para que se faça as coisas da forma que “queremos e não afunilarmos apenas às regras do dia”. O grupo de artistas mostra-se mais do que preparado para isso e, como a coreógrafa refere ao Observador, a ideia de síncope era algo que pretendia explorar nesta sua nova leitura da noite. Tal como a decisão do nome do espetáculo, as influências do Flamenco – que estudou na Escola de Dança Matilde Coral, em Sevilha – foram novas roupagens que quis explorar. “Há uma relação com um indivíduo que cria ritmos mais complicados e desafia o grupo de diferentes formas”, decisão que tomou com Hendrik Willekens, o compositor com quem trabalhou.
Mas esta reflexão, na verdade, surge quando a coreografa começou a ler Catherine Clément. A procura do “momento” dentro do pensamento e da filosofia ocidental tornou-se numa “espécie de inspiração” ou “uma síncope”, tal como a coreografa pretende chamar partindo das referências de Clément e da suas obras. “A surpresa, o inesperado, algo que não é controlado e que fala sobre a história da filosofia ocidental também como sistemas de lógica, mas também apenas de dar sentido às coisas, quase como o pensamento acontecesse de uma forma mais espontânea e energética”, termina a coreografa.
“The night makes us. We make the night.” [A noite faz-nos. Nós fazemos a noite.]: é assim que começa Noche, e é assim que nos vai recordando da sua mística ao longo de cerca de uma hora de espetáculo. A repetição do movimento e da voz, do ritmo, mesmo nos momentos em que o palco está completamente escuro, remete-nos para um lugar de liberdade dentro do oculto. É importante voltar a este facto, pois, é também neste lugar que a coreógrafa pretende colocar o público. Mais do que transparentes, frágeis. Alma acrescenta que “serem visíveis e não o serem em palco e manter as coisas a funcionar é um desafio. Isso é algo que, de uma perspetiva externa, torna-nos um instrumento”.
Há uma espécie de provocação, como se partissem e voltassem, ou como se um canto no escuro se ouvisse e todos eles ironizassem isso com risos. O som e a audição trespassam o escuro, mais do que a visão. Tudo se torna mais audível e, desta forma, a artista comprova-nos que gosta de pensar nos seus espetáculos como se estes estivessem a construir um instrumento, para que este esteja sempre a tocar. É neste recurso constante da ação e do movimento que a fragilidade se expõe. A performance de algo que se sente muito vivo, “muito aqui e agora”, que vai além da representação da imagem puxa-nos para os detalhes que não estamos acostumados a ver. É real. “Reparas realmente nas pessoas, nas suas lutas, nos seus pontos fortes, nos seus truques, nas suas fraquezas”, partilha a coreógrafa. Há uma certa nudez da fragilidade que, tal como este espetáculo nos tenta mostrar,
Só pode ser trazido de volta pela noite e que Alma também contrapõe: “Há qualquer coisa nas pessoas que mostram um outro lado de si próprias, onde podemos reparar nelas de uma forma diferente por uma certa falta de controlo ou pela possibilidade de espontaneidade se também precisarmos de o ser”. E se não quisermos estar numa composição que é controlada? E se quisermos correr riscos? É a estas questões que o espetáculo tenta responder ou, por sua vez, fazer-nos sentir.
A linguagem cinematográfica que a sala dispõe, com as cores que a iluminam, também explora todas estas realidades do “profundo” e do “ser intenso”. As cores quentes, as luzes de rua e os contrastes intensos entre o vermelho e o azul levam-nos, por momentos, a um código do “auro” e do “diabólico”, entre a lua e o fogo, numa ininterrupta procura da morte. Já o verde, tal como a coreografa avança, resulta na associação aos sapos, “há um momento em que a luz é quase como um lago e temos movimentos que pensamos como os sapos a saltar na noite”. A síncope também é isto, uma criatividade sem fim.
Este encontro entre a dança, a música, a voz e o ritmo pretende colocar-nos numa dimensão que a própria Alma quer levar agora para todos os seus espetáculos: “De nos apoiarmos não no músculo e na força que temos, mas, de alguma forma, na nossa própria fragilidade, mas nos truques que temos, pois não se trata de ser forte, trata-se de ter truques e ser frágil”.